segunda-feira, 24 de maio de 2010

História das Mentalidades, Imaginário e Psico-História

(artigo publicado na revista Labirinto,
da Universidade Federal de Rondônia)


Dentro de uma fascinante profusão de campos intradisciplinares que tem revelado um sensível enriquecimento dos estudos históricos no que se refere ao interesse por novos objetos e por novas abordagens, a historiografia da segunda metade do século XX assistiu à significativa emergência de campos do saber historiográfico que passaram a valorizar o universo mental dos seres humanos em sociedade, os seus modos de sentir, o Imaginário por eles elaborados coletivamente. Às modalidades já tradicionais na historiografia como a História Política, a História Econômica ou a História Social, os novos historiadores propuseram acrescentar a História das Mentalidades, a Psico-História, a História do Imaginário. Teremos aqui campos que com alguma freqüência se interpenetram no que concerne aos seus objetos, às suas fontes privilegiadas, às suas abordagens e aportes teóricos, às suas conexões com outros saberes e aos seus padrões de interdisciplinaridade. Contudo, cada um destes campos conserva singularidades e aspectos que nos permitem separá-los entre si como espaços intradisciplinares bem diferenciados.

O objetivo deste artigo será o de clarificar as diferenças e similitudes entre aqueles campos historiográficos que têm atentado mais enfaticamente para o estudo dos padrões mentais, dos modos de sentir e dos imaginários coletivos nos vários períodos históricos, ou, mais particularmente, a História das Mentalidades, a Psico-História e a História do Imaginário.


História das Mentalidades

Será bastante oportuno iniciar esta discussão crítica com um exame dos aspectos que têm permitido identificar esta modalidade historiográfica que se mostrou polêmica deste os seus primórdios: a História das Mentalidades. Esta nova modalidade da História, que tem precursores já na primeira metade do século XX mas que, rigorosamente, começa a se delinear como um novo espaço de ação para os historiadores na segunda metade do século, propunha-se enfocar a dimensão da sociedade relacionada ao mundo mental e aos modos de sentir, ficando a partir daí sob a rubrica de uma designação que tem dado margem a grandes debates que não poderão ser todos pormenorizados aqui.

Terá certamente contribuído para esta polêmica o fato de que os historiadores das mentalidades foram os primeiros a se interessarem por determinados temas não convencionais, desbravando certos domínios da História que os historiadores ainda não haviam pensado em investigar. Assim, Robert Mandrou propôs-se a estudar a longa persistência de certos modos de sentir que motivaram a prática da feitiçaria e sua repressão no livro Magistrados e feiticeiros na França do século XVII (1979); Jean Delumeau impôs a si a tarefa de examinar um complexo de medos de longa duração que haviam estruturado o modo de sentir do homem europeu durante muito tempo, e cuja lenta superação permitiu precisamente a passagem para o mundo moderno (1989), Philippe Ariès (1981) e Michel Vovelle (1982) empenharam-se dedicadamente em analisar historicamente os sentimentos do homem diante da Morte.

De certo modo, por força dos novos e imprevisíveis objetos que traziam à tona com bastante audácia – e em virtude de sua tendência a dedicarem anos de um exaustivo trabalho intelectual a temas que deles fizeram verdadeiros especialistas em objetos historiográficos até então considerados insólitos – os historiadores das mentalidades vieram a constituir uma espécie de vanguarda da tendência da Nova História da segunda metade do século XX em se tornar uma espécie de “história em migalhas”, para utilizar aqui a famosa expressão que deu um título ao impactante livro de François Dosse (1994) . sobre a passagem dos Annales para a Nova História Foram eles que primeiro exploraram certos temas que – a princípio recebidos pelos demais historiadores como estranhos ou exóticos – logo encontrariam um curioso lugar editorial entre uma multidão de outros campos temáticos que posteriormente marcariam, através de uma miríade de novas especialidades relativas aos ‘domínios’ históricos, a tendência à fragmentação que parecia deixar definitivamente para trás as antigas ambições braudelianas de realizar uma ‘história total’.

Devido à sua exploração ousada de certos temas até então incomuns, a História das Mentalidades produziu no seu nascedouro uma forte estranheza que logo despertaria acirradas polêmicas. Mas é muito importante ter em vista que a História das Mentalidades não pode ser definida essencialmente com base nestes novos domínios historiográficos que ela passou a privilegiar em um primeiro momento. Mesmo porque, posteriormente, estes mesmos domínios também foram retomados por outros campos da história que pouco ou nada têm a ver com a História das Mentalidades.

Rigorosamente, qualquer tema pode ser trabalhado a partir dos vários enfoques que classificaremos aqui como relacionados às ‘dimensões’ sociais (a Política, a Economia, a Cultura, as Mentalidades, o Imaginário, e assim por diante) . Assim, uma História da Morte pode ser trabalhada pela História Demográfica, pela História Política, pela História da Cultura Material, e não apenas pela História das Mentalidades. Em contrapartida, temas já tradicionais como o do “nacionalismo” ou o da “religião” podem ser igualmente examinados da perspectiva de uma História das Mentalidades. Não são, portanto, os domínios privilegiados pelos historiadores das mentalidades que definem o tipo de história que fazem, mas sim a dimensão da vida social para a qual os seus olhares se dirigem: o universo mental, os modos de sentir, o âmbito mais espontâneo das representações coletivas e, para alguns, o inconsciente coletivo.

A verdadeira polêmica que envolve a história das mentalidades é teórica e metodológica. Apenas para registrar alguns problemas pertinentes a este campo historiográfico que se consolida a partir da década de 1960, mencionaremos aqui as questões fundamentais que devem ser refletidas pelo historiador que ambiciona trilhar estes caminhos de investigação. Existirá efetivamente uma mentalidade coletiva? Será possível identificar uma base comum presente nos “modos de pensar e de sentir” dos homens de determinada sociedade – algo que una “César e o último soldado de suas legiões, São Luís e o camponês que cultivava as suas terras, Cristóvão Colombo e o marinheiro de suas caravelas”? Estas imagens, extremamente oportunas, foram celebrizadas por Lucien Febvre.

Abraçando a perspectiva teórica de que existem de fato mentalidades coletivas, o historiador deve ampliar a sua concepção documental. Conforme assinala François Furet (1991: p.93), se o historiador das mentalidades pretende alcançar níveis médios de comportamento, não pode se satisfazer mais apenas com a literatura tradicional do testemunho histórico, que é inevitavelmente subjetiva, não representativa, ambígua. Assim, como veremos adiante, ocorreu um casamento feliz entre a História das Mentalidades (um campo histórico que se refere a uma ‘dimensão’) e a História Serial (um campo histórico que se refere a uma ‘abordagem’). A revalidação dos estudos de natureza qualitativa, ao lado da abordagem serial, não esteve contudo alheia a outros historiadores das mentalidades –como no caso de Michel Vovelle, historiador marxista das mentalidades que defende em um artigo importante o uso das duas abordagens como igualmente válidos para captar a dimensão mental de uma sociedade (1987: p.31).

Para resumir três ordens de tratamentos metodológicos que os historiadores das mentalidades têm empregado na sua ânsia de captar os modos coletivos de pensar e de sentir, poderemos registrar precisamente (1) a abordagem serial, (2) a eleição de um recorte privilegiado que funcione como lugar de projeção das atitudes coletivas (uma aldeia, uma prática cultural, uma vida), ou finalmente (3) uma abordagem extensiva de fontes de naturezas diversas. Neste último caso enquadra-se a obra O Homem diante da Morte, de Philippe Ariès. Nesta ambiciosa obra, lança-se mão dos mais diversos tipos de fontes – desde os escritos de todos os tipos (obras literárias, textos hagiográficos, poemas, canções, crônicas oficiais, testemunhos anônimos) até as fontes iconográficas e os objetos da cultura material. Vovelle denomina a esta utilização de um universo de fontes tão heterogêneo, percorrido mais ou menos livremente, de técnica “impressionista” (1987: 51).

Ele mesmo já utiliza a segunda ordem de procedimentos a que atrás nos referíamos: de um modo geral, prefere a abordagem serial. Em sua tese sobre a Piedade Barroca e Descristianização (1978), Vovelle examinou com precisão e método milhares de testamentos provençais – sempre de forma maciça e procurando enxergar serialmente padrões e deslocamentos de padrões que denunciassem as variações das atitudes diante da morte na longa duração por ele escolhida. Quando examina fontes iconográficas, afasta-se da abordagem qualitativa livre para avaliar topicamente a recorrência e a ruptura de certos modos de representar, às vezes medindo espaços no interior da representação iconográfica e quantificando elementos figurativos. Se vai às fontes da cultura material, à arquitetura funerária, por exemplo, faz medições das distâncias que separam túmulos e altares. Sua abordagem é portanto sistemática, cuidadosamente preocupada com a homogeneidade das fontes e com o seu lugar preciso dentro da série.

A derradeira ordem de tratamentos metodológicos corresponde à já mencionada eleição de um recorte privilegiado que funcione como lugar de projeção das atitudes coletivas ou de padrões de sensibilidade. Pode ser um microcosmos localizado ou uma vida, desde que o autor os considere significativos para a percepção de uma mentalidade coletiva mais ampla.


Leia a continuação deste artigo em:
http://www.cei.unir.br/artigo71.html

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A Historiografia Contemporânea e seus Domínios – deslocamentos e mutações

A História, nos dias de hoje, divide-se em inúmeras modalidades. Ouve-se falar em História Cultural, em História das Mentalidades, em História do Imaginário, em Micro-História, em História Serial, em História Quantitativa ... o que define estes e outros campos? Em obra recente, tivemos por objetivo central precisamente o esclarecimento destas várias modalidades do saber histórico, discutindo suas singularidades, suas interpenetrações umas com as outras, suas relações interdisciplinares, suas fontes e objetos privilegiados (BARROS, 2004).

A tese central daquele trabalho é a de que existem três grandes grupos de critérios que presidem a divisão da História em modalidades mais específicas, e a de que muito da confusão sobre o que é uma sub-especialidade ou o que é outra, ou sobre como enquadrar uma dada obra neste complexo caleidoscópio de sub-especialidades que coincide com o campo disciplinar da História, está no fato de que algumas coletâneas de balanceamentos historiográficos misturam inadvertidamente critérios de classificação sem alertar devidamente o leitor, que acaba perdendo a oportunidade de desenvolver uma maior clareza sobre a rede de modalidades que organiza o pensamento historiográfico na atualidade.

A chave para compreender estes vários campos da História, conforme a argumentação que desenvolvemos na referida obra, está em distinguir muito claramente as divisões que se referem a dimensões (enfoques), as divisões que se referem a abordagens (ou modos de fazer a História), e as divisões intermináveis que se referem aos domínios (áreas de concentração em torno de certas temáticas e objetos possíveis).

Para registrarmos algumas exemplificações, podemos dizer que o primeiro grupo de critérios que gera divisões internas na disciplina histórica e que se refere ao que chamamos de dimensões corresponde àquilo que o historiador traz para primeiro plano no seu exame de uma determinada sociedade: a Política, a Cultura, a Economia, a Demografia, e assim por diante. Desta maneira, teríamos na História Econômica, na História Política, na História Cultural ou na História das Mentalidades campos do saber histórico relativos às dimensões ou aos enfoques do historiador. Um historiador cultural, por exemplo, estuda os fatos da cultura; um historiador político estuda o poder nas suas múltiplas formas; um historiador demográfico orienta o seu trabalho em torno da noção que lhe é central de “população”.

Um segundo grupo de critérios para estabelecer divisões no saber histórico é o que chamamos de abordagens, referindo-se aos métodos e modos de fazer a História, aos tipos de fontes e também às formas de tratamento de fontes com os quais lida o historiador. São divisões da História relativas a abordagens a História Oral, a História Serial, a Micro-História e tantas outras. A História Oral, por exemplo, lida com fontes orais e depende de técnicas como a das entrevistas; a História Serial trabalha com fontes seriadas – documentação que apresente um determinado tipo de homogeneidade e que possa ser analisada sistematicamente pelo historiador. A Micro-História refere-se a abordagens que reduzem a escala de observação do historiador, procurando captar em uma sociedade aquilo que habitualmente escapa aos historiadores que trabalham com um ponto de vista mais panorâmico, mais generalista ou mais distanciado.

Por fim, podemos pensar divisões da História que chamaremos de domínios, e que se referem a campos temáticos privilegiados pelos historiadores. O objetivo deste artigo será precisamente o de refletir sobre os vários domínios da História que têm surgido e desaparecido no horizonte de saber desta complexa disciplina que é a História. Estamos falando de domínios quando nos referimos a uma História da Mulher, a uma História do Direito, a uma História de Sexualidade, a uma História Rural, ou a uma História da Vida Privada. Tentaremos esclarecer a seguir este grupo de critérios.


Leia a continuação deste artigo em
http://www.scribd.com/doc/31296656/A-historiografia-contemporanea-e-seus-dominios-deslocamentos-e-mutacoes-Tempos-Historicos-Unioeste-2005

sexta-feira, 7 de maio de 2010

O Campo da História - apresentação do livro


O Campo da História”, publicado pela primeira vez em 2004, procura traçar um panorama sobre o que é a História hoje, e sobre suas várias modalidades (História Cultural, História Política, Micro-História, História das Mentalidades, e tantas outras). Procura-se discutir cada uma destas modalidades falando sobre suas fontes, conceitos, temas mais recorrentes, e dando exemplos de historiadores brasileiros e internacionais

Uma das teses centrais do livro é a de que os diversos trabalhos e pesquisas historiográficas não se localizam nunca inteiramente dentro de uma única modalidade historiográfica (por exemplo, a História Econômica), mas sim em uma  conexão estabelecida entre determinadas modalidades (por exemplo, uma determinada pesquisa pode estar constituída em conexão entre História Econômica, História Serial e História do Trabalho, entre outras modalidades).

Por exemplo, uma pesquisa sobre a "Música de Protesto no período da Ditadura Militar do Brasil", que esteja trabalhando com a Metodologia de História Oral, pode ter sua identidade reconhecida em uma conexão entre a História Política, a História Cultural, a História da Música, e a História Oral.

Outra tese sustentada pelo livro é a de que a maior parte das modalidades historiográficas contemporâneas surgiu a partir de três critérios distintos:

1 - As "dimensões" referem-se a modalidades que trazem a primeiro plano instâncias mais amplas (e incontornáveis) do viver humano e social. Por exemplo, a História Política, a História Cultural, a História Econômica, a História Demográfica, a História das Mentalidades. Cada uma destas dimensões refere-se a uma questão fundamental, na sua forma mais irredutível: o Poder (História Política), a Cultura (História Cultural), a Economia (a História Econômica), os modos de pensar e de sentir (a História das Mentalidades), a população (a História Demográfica). Estes são apenas alguns exemplos das modalidades historiográficas que se referem a dimensões.

2 - As "abordagens" referem-se a modalidades que remetem a "modos de fazer a história". Este tipo de modalidade historiográfica pode se referir a uma espécie de fonte, a uma maneira de trabalhar com determinadas fontes, a um modo de recortar o seu objeto ou de estabelecer o seu espaço de análise e observação. São modalidades historiográficas definidas pelas "abordagens" a 'História Oral' (que trabalha com um certo tipo de fontes - os depoimentos orais - e uma determinada metodologia), a 'História Serial' (que trabalha com fontes homogêneas constituídas em série e com uma abordagem que busca permanências, variações, padrões, mudanças de padrão na série), ou ainda a 'Micro-História', que trabalha com uma escala reduzida de observação, e que procura enxergar através do micro-recorte (uma trajetória de vida, um circuito familiar, uma vizinhança, um ambiente fabril, uma prática social) algo relacionado a uma questão social de maior alcance. Estes são apenas três exemplos de modalidades historiográficas geradas pelo critério "abordagens".

3 - Os domínios temáticos, que na verdade são infinitos. Referem-se a grandes ou pequenos recortes de temas, e geralmente tem uma amplitude que pode ser incluída dentro de uma "dimensão" (ou se situar entre elas). Mesmo quando um domínio temático é bastante amplo, não podemos dizer que ele é uma "dimensão" ou uma instância incontornável do viver humano, como ocorre com as modalidades referentes ao critério das dimensões. Por exemplo, a "História do Direito" e a "História das Religiões" são grandes domínios, bastante antigos e já clássicos. Embora um grande número de sociedades possuam "Direito" e "Religião", podemos perfeitamente imaginar sociedades que não as tenham. Na pré-história, por exemplo, não havia algo como o "Direito". A "História da Música", por exemplo, é um "domínio temático". Embora a maior parte das sociedades que conhecemos apresente alguma forma de música, é perfeitamente imaginável uma sociedade que não tenha Música. Além disso, a "Música", embora constitua um domínio amplo, pode ser perfeitamente incluída em uma 'dimensão' como a da Cultura.

Os domínios temáticos são infinitos, e podem ir dos grandes domínios aos domínios menores, mais específicos, que até cabem uns nos outros. Por exemplo, posso pensar uma "História do vestuário", posso pensar uma "História da Censura".

A fragmentação do mercado editorial em alguns domínios temáticos mais exóticos - por exemplo, a "História do Canibalismo" ou a "História dos pequenos objetos úteis" - tem merecido críticas de alguns historiadores que alertam para a perda de sentido de totalidade, em alguns casos. Foi o caso, por exemplo, da crítica encaminhada pelo célebre livro "A História em Migalhas", de François Dosse, que critica a tendência à fragmentação da história levada a cabo pela Nova História Francesa. De todo modo, a Historiografia conhece inúmeros domínios temáticos, alguns já clássicos e establizados como campos de pesquisa e reflexão, tais como a História da Música, a História do Direito, a História da Educação, a História das Religiões.
Com as 'dimensões' e as 'abordagens', os 'domínios temáticos' constituem os três critérios a partir dos quais podemos pensar a profusão de modalidades historiográficas que pode ser entrevista no cenário da historiografia contemporânea.

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Estas são as teses fundamentais desenvolvidas no livro "O Campo da História" (Petrópolis: Vozes, 2009, 6a edição).


Uma Resenha sobre o livro, elaborada pela professora Maria Abadia Cardoso, da Universidade Federal de Uberlândia, pode ser encontrada na Revista Fênix (UFU):

Dados bibliográficos:
Autor: José D'Assunção Barros
Título: O Campo da História
Editora: Editora Vozes