domingo, 26 de dezembro de 2010

História Política - poder, micropoderes, discurso e imaginário político

Política e Poder, é quase um truísmo dizer, são indissociáveis. Por outro lado, tanto a Política – campo de expressão por excelência do Poder nos seus âmbitos mais tradicionais – como o Poder em seu sentido mais amplo (o que inclui toda uma diversidade de setores da vida social e das atividades humanas nas quais tal noção se aplica de maneira imperiosa) são igualmente indissociáveis da História. A Política, em sentido mais restrito, e o Poder, em sentido mais amplo, são construídos, percebidos, exercidos, apropriados, imaginados e discursados de modos diferenciados ao longo da História. Nada mais natural que, diante do incessante fluxo da História no que tange às múltiplas perspectivas sobre o Poder que vão surgindo e se desenvolvendo, também tenha se afirmado no seio da historiografia um campo mais específicos de estudos, também em permanente transformação: a História Política.
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É precisamente no âmbito deste campo mais específico de estudos historiográficos que, nas décadas recentes, tanto no Brasil como nos círculos historiográficos internacionais, tem crescido o interesse em se rediscutir o Poder, a Política e a própria História Política com relação aos seus paradigmas, questões conceituais e procedimentos metodológicos. O interesse facilmente se explica. Se a partir da terceira década do século XX se impuseram como campos preferenciais vitoriosos na historiografia ocidental alguns modos de pensar e realizar a História que pareciam relegar para segundo plano a História Política – na verdade uma velha História Política que fora tão típica do século XIX – já nas décadas recentes a historiografia ocidental se viu partilhada por uma diversidade muito maior de modalidades e abordagens históricas, algumas novas, outras renovadas.
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Em um mundo contemporâneo no qual tem se tornado cada vez mais clara a multiplicidade de poderes de todos os tipos que envolvem a vida social e individual, da coerção ou planificação governamental mais direta às sutis formas de propaganda subliminares, a História Política viu-se sensivelmente renovada neste novo rearranjo de modalidades históricas. Trata-se, contudo, muito mais de um desenvolvimento lógico e estrutural da Historiografia e de sua inserção no contexto da história recente, conforme veremos oportunamente, do que de uma simples moda historiográfica que retorna para compensar seus anos de relativo eclipse.
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Vejamos, antes de mais nada, como se situa a História Política no quadro das inúmeras modalidades em que hoje se encontra partilhado o Campo da História. Dentro do vasto campo de modalidades da História que hoje abrigam os enfoques e fazeres historiográficos – e que vão de categorias mais recentes como a Micro-História e a História do Imaginário até categorias já tradicionais como a História Econômica e a História Demográfica – existem algumas modalidades que se definem a partir de uma peculiaridade bem interessante. Elas são atravessadas por uma palavra apenas, que parece iluminar de maneira especial cada um dos seus diversos caminhos internos. Entre outras possíveis, podemos lembrar as noções de “Cultura”, “População”, “Poder”, a partir das quais teremos modalidades historiográficas muito específicas como a História Cultural, a História Demográfica, a História Política. Dentre essas modalidades historiográficas que são iluminadas em seu espectro de possibilidades internas por uma noção fundamental, a História Política ocupa um lugar bastante especial por razões que já discutiremos. Por trás da História Política – de qualquer história política, das antigas às novas possibilidades – está uma palavra apenas, ou um aspecto, que ocupa o papel de centro de gravidade de todos os fazeres e abordagens históricas que se abrigam sobre esta categoria. A palavra “poder” rege os caminhos internos da História Política da mesma maneira que a palavra “cultura” rege os caminhos internos da História Cultural, ou que a palavra “imagem” erige-se como horizonte fundamental para a História do Imaginário.
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“Poder”, como “cultura”, é entretanto uma palavra complexa, polissêmica, que se abre como campo de disputas para múltiplos sentidos e como objeto para multidiversificadas apropriações. Temos aqui palavras que são verdadeiros espelhos de muitas faces, que se transfiguram conforme os seus usos ou as intenções que as animam, que se transformam, que se comprimem ou se alargam ao longo da sua história léxica. A palavra “poder” é como uma armadura que se tem oferecido para muitas batalhas historiográficas, verdadeira arena que estimula confrontos internos dos quais podem emergir vencedores, neste ou naquele momento, alguns sentidos mais específicos ou mais abrangentes.
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Deveremos indicar, em primeiro lugar, a expansão de sentidos a que se permite o conceito de “Poder” na passagem de uma história política mais tradicional, como a que se fazia no século XIX, para as novas possibilidades que surgem com a historiografia do século XX, culminando com um novo âmbito que, nas últimas décadas do século XX, já passa a ser referido em termos de uma “nova história política”. “Poder”, de acordo com estas expansões de sentido, não seria apenas aquele que, na ótica dos historiadores e pensadores políticos do século XIX, emanava sempre do Estado ou das grandes Instituições – ou que a estes podia se confrontar através de revoluções capazes de destronar um rei e impor uma nova ordem igualmente centralizada – e nem seria apenas aquele poder que de resto mostrava-se exercido fundamentalmente pelos personagens que ocupavam lugar de destaque nos quadros governamentais, institucionais e militares da várias nações-estados. “Poder” – de acordo com uma nova ótica que foi se impondo gradualmente – é aquilo que exercemos também na nossa vida cotidiana, uns sobre os outros, como membros de uma família, de uma vizinhança ou de uma comunidade falante. “Poder” é o que exercemos através das palavras ou imagens, através dos modos de comportamento, dos preconceitos.
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O “Poder” apresenta-se a todo instante neste imenso teatro social no qual todos ocupamos simultaneamente a função de atores e de espectadores – daí que se possa falar hoje em um “teatro do poder” quando examinamos a política nas várias épocas históricas. Poder, no decurso de uma série de novas lutas políticas e sociais que redefiniu radicalmente a sociedade em que vivemos, é aquilo os homens aprenderam a reconhecer nas mulheres, que as maiorias aprenderam a reconhecer nas minorias, que o mundo da ordem aprendeu a reconhecer na marginalidade, que os adultos que aprenderam a reconhecer nos mais jovens. Essa compreensão mais abrangente da noção de “poder” redefine, obviamente, os sentidos para o que se deve entender por História Política.
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Redefinida desta maneira, os objetos da História Política são todos aqueles que se mostram atravessados pela noção de “poder” em todas as direções e sentidos, e não mais exclusivamente de uma perspectiva da centralidade estatal ou da imposição dos grupos dominantes de uma sociedade. Neste sentido, teremos de um lado aqueles antigos enfoques da História Política tradicional que, apesar de terem sido rejeitados pela historiografia mais moderna de a partir dos anos 1930 (Escola dos Annales e novos marxismos), com as últimas décadas do século XX começaram a retornar dotados de um novo sentido. A Guerra, a Diplomacia, as Instituições, ou até mesmo a trajetória política dos indivíduos que ocuparam lugares privilegiados na organização do poder – tudo isto começa a retornar a partir do final do último século com um novo interesse.
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De outro lado, além destes objetos já tradicionais que se referem às relações entre as grandes unidades políticas e aos modos de organização destas macro-unidades políticas que são os Estados e as Instituições, adquirem especial destaque, por exemplo, as relações políticas entre grupos sociais de diversos tipos. A rigor, as ‘ideologias’ e os movimentos sociais e políticos (por exemplo, as Revoluções) sempre constituíram pontos de especial interesse por parte da nova historiografia que se inicia com o século XX, mesmo porque estes eram campos de interesses muito caros à nova História Social que estava então se formando. Mas por outro lado, tal como já ressaltamos, hoje despertam um interesse análogo as relações interindividuais (micropoderes, relações de poder no interior da família, relacionamentos intergrupais), bem como o campo das representações políticas, dos símbolos, dos mitos políticos, do teatro do poder, ou do discurso


Leia a continuação deste artigo em

(BARROS, José D'1Assunção. “História Política – o estudo historiográfico do poder, dos micropoderes, do discurso e do imaginário político”. Educere et Educare – Revista de Educação. n°4, n°1. 1° semestre de. 2009).


O artigo baseia-se no capítulo "História Política" do livro O Campo da História (Petrópolis: Editora Vozes, 2009, 7a edição).

domingo, 19 de dezembro de 2010

História Cultural - um panorama teórico e historiográfico

Entre as várias modalidades da História que se desenvolveram no decurso do século XX, algumas têm primado pela riqueza de possibilidades que abrem aos historiadores que as praticam, por vezes com perspectivas antagônicas entre si. A História Cultural – campo historiográfico que se torna mais preciso e evidente a partir das últimas décadas do século XX, mas que tem claros antecedentes desde o início do século – é entre estas particularmente rica no sentido de abrigar no seu seio diferentes possibilidades de tratamento. Nosso objetivo aqui será o de elaborar um pequeno panorama das principais tendências que têm se projetado no âmbito da História Cultural.
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Para introduzir um universo comum a todas as tendências de aqui falaremos, consideraremos que a História Cultural é aquele campo do saber historiográfico atravessado pela noção de “cultura” (da mesma maneira que a História Política é o campo atravessado pela noção de “poder”, ou que a História Demográfica funda-se essencialmente sobre o conceito de “população”, e assim por diante). Cultura, contudo, é um conceito extremamente polissêmico, notando-se ainda que o século XX trouxe-lhe novas redefinições e abordagens em relação ao que se pensava no século XIX como um âmbito cultural digno de ser investigado pelos historiadores.
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Orientando-se em geral por uma noção muito restrita de “cultura”, os historiadores do século XIX costumavam passar ao largo das manifestações culturais de todos os tipos que aparecem através da cultura popular, além de também ignorarem que qualquer objeto material produzido pelo homem faz também parte da cultura – da cultura material, mais especificamente. Além disto, negligenciava-se o fato de que toda a vida cotidiana está inquestionavelmente mergulhada no mundo da cultura. Ao existir, qualquer indivíduo já está automaticamente produzindo cultura, sem que para isto seja preciso ser um artista, um intelectual, ou um artesão. A própria linguagem, e as práticas discursivas que constituem a substância da vida social, embasam esta noção mais ampla de Cultura. “Comunicar” é produzir Cultura, e de saída isto já implica na duplicidade reconhecida entre Cultura Oral e Cultura Escrita (sem falar que o ser humano também se comunica através dos gestos, do corpo, e da sua maneira de estar no mundo social, isto é, do seu ‘modo de vida’).
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Apenas para exemplificar com uma situação significativa, tomemos um “livro”, este objeto cultural reconhecido por todos os que até hoje se debruçaram sobre os problemas culturais. Ao escrever um livro, o seu autor está incorporando o papel de um produtor cultural. Isto todos reconhecem. O que foi acrescentado pelas mais modernas teorias da comunicação é que, ao ler este livro, um leitor comum também está produzindo cultura. A leitura, enfim, é prática criadora – tão importante quanto o gesto da escritura do livro. Pode-se dizer, ainda, que cada leitor recria o texto original de uma nova maneira – isto de acordo com os seus âmbitos de “competência textual” e com as suas especificidades (inclusive a sua capacidade de comparar o texto com outros que leu, e que podem não ter sido previstos ou sequer conhecidos pelo autor do texto original que está se prestando à leitura). Desta forma, uma prática cultural não é constituída apenas no momento da produção de um texto ou de qualquer outro objeto cultural, ela também se constitui no momento da recepção. Este exemplo, aqui o evocamos com o fito de destacar a complexidade que envolve qualquer prática cultural (e elas são de número indefinido).
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Desde já, para aproveitar o exemplo acima discutido, poderemos evocar uma delimitação já moderna de História Cultural elaborada por Georges Duby . Para o historiador francês, este campo historiográfico estudaria dentro de um contexto social os “mecanismos de produção dos objetos culturais” (aqui entendidos como quaisquer objetos culturais, e não apenas as obras-primas oficialmente reconhecidas). O exemplo acima proposto autoriza-nos a acrescentar algo. A História Cultural enfoca não apenas os mecanismos de produção dos objetos culturais, como também os seus mecanismos de recepção (e já vimos que, de um modo ou de outro, a recepção é também uma forma de produção). Estabelecido isto, retomemos a comparação entre os atuais tratamentos historiográficos da Cultura e aqueles que eram tão típicos do século XIX.
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Ao ignorar a inevitável complexidade da noção básica que a fundamentava, a História da Cultura tal como era praticada nos tempos antigos era uma história elitizada, tanto nos sujeitos como nos objetos estudados. A noção de “cultura” que a perpassava era uma noção demasiado restrita, que os avanços da reflexão antropológica vieram desautorizar. Não que as produções culturais que as várias épocas reconhecem como “alta cultura”, ou que a produção artística que está hoje sacramentada pela prática museológica tenham perdido interesse para os historiadores. Ao contrário, estuda-se Arte e Literatura do ponto de vista historiográfico muito mais do que nos séculos anteriores ao século XX. Apenas que a estes interesses mais restritos acrescentou-se uma infinidade de outros. Tal parece ter sido a principal contribuição do último século para a História da Cultura. Para além disto, passou-se a avaliar a Cultura também como processo comunicativo, e não como a totalidade dos bens culturais produzidos pelo homem. Este aspecto, para o qual confluíram as contribuições advindas das teorias semióticas da cultura, também representou um passo decisivo.
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As noções que se acoplam mais habitualmente à de “cultura” para constituir um universo de abrangência da História Cultural são as de “linguagem” (ou comunicação), “representações”, e de “práticas” (práticas culturais, realizadas por seres humanos em relação uns com os outros e na sua relação com o mundo, o que em última instância inclui tanto as ‘práticas discursivas’ como as ‘práticas não-discursivas’). Para além disto, a tendência nas ciências humanas de hoje é muito mais a de falar em uma ‘pluralidade de culturas’ do que em uma única Cultura tomada de forma generalizada. Em nosso caso, como estamos empregando a História Cultural como um dos enfoques possíveis para o historiador que se depara com uma realidade social a ser decifrada, utilizaremos em algumas ocasiões a expressão empregada no singular como ordenadora desta dimensão complexa da vida humana. Trata-se no entanto de uma dimensão múltipla, plural, complexa, e que pode gerar diversas aproximações diferenciadas.
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Os objetos da História Cultural, face à noção complexa de cultura que hoje predomina nos meios da historiografia profissional, são inúmeros. A começar pelos objetos que já faziam parte dos antigos estudos historiográficos da Cultura, continuaremos mencionando o âmbito das Artes, da Literatura e da Ciência – campo já de si multi-diversificado, no qual podem ser observados desde as imagens que o homem produz de si mesmo, da sociedade em que vive e do mundo que o cerca, até as condições sociais de produção e circulação dos objetos de arte e literatura. Fora estes objetos culturais já de há muito reconhecidos, e que de resto sintonizam com a “cultura letrada”, incluiremos todos os objetos da ‘cultura material’ e os materiais (concretos ou não) oriundos da “cultura popular” produzida ao nível da vida cotidiana através de atores de diferentes especificidades sociais.
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De igual maneira, uma nova História Cultural interessar-se-á pelos sujeitos produtores e receptores de cultura – o que abarca tanto a função social dos ‘intelectuais’ de todos os tipos (no sentido amplo, conforme veremos adiante), até o público receptor, o leitor comum, ou as massas capturadas modernamente pela chamada “indústria cultural” (esta que, aliás, também pode ser relacionada como uma agência produtora e difusora de cultura). Agências de produção e difusão cultural também se encontram no âmbito institucional: os Sistemas Educativos, a Imprensa, os meios de comunicação, as organizações socioculturais e religiosas.
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Para além dos sujeitos e agências que produzem a cultura, estudam-se os meios através dos quais esta se produz e se transmite: as práticas e os processos. Por fim, a ‘matéria-prima’ cultural propriamente dita (os padrões que estão por trás dos objetos culturais produzidos): as “visões de mundo”, os sistemas de valores, os sistemas normativos que constrangem os indivíduos, os ‘modos de vida’ relacionados aos vários grupos sociais, as concepções relativas a estes vários grupos sociais, as idéias disseminadas através de correntes e movimentos de diversos tipos. Com um investimento mais próximo à História das Mentalidades, podem ser estudados ainda os modos de pensar e de sentir tomados coletivamente.
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Estes inúmeros objetos da História Cultural – distribuídos ou partilhados entre os cinco eixos fundamentais acima citados (objetos culturais, sujeitos, práticas, processos e padrões) – têm constituído um foco especial de interesses da parte de vários historiadores do século XX. Nos parágrafos que se seguem, procuraremos discutir algumas das várias contribuições basilares que atuaram conjuntamente para a constituição deste campo no decurso do século.
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Leia acontinuação deste artigo em:
http://ning.it/gUSXnu


Referência: BARROS, José D'Assunção. “História Cultural – um panorama teórico e historiográfico” in Textos de História (Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UNB). dezembro de 2003, volume 11, nْ.1/2. p.145-171

O texto também pode ser encontrado, com algumas adaptações, em um dos capítulos do livro O Campo da História (Petrópolis: Editora Vozes, 2010, 7a edição). Leia também: BARROS, José D'Assunção. "A História Cultural e a Contribuição de Roger Chartier. Diálogos, UEM, 2005. http://ning.it/eqx6jU