A possibilidade de se pensar em uma História das Civilizações requer uma visão mais ampla do que a habitual em relação ao universo cultural humano, transcendendo as fronteiras nacionais de modo a permitir operacionalizar o conceito de "civilização". O que vem a ser uma "civilização"? Podemos pensar na civilização como um recorte cultural e identitário mais abrangente, que se refere a conjuntos populacionais que podem abarcar vários paízes, e que, ao mesmo tempo, parecem se opor a outros recortes análogos, isto é, a outras "civilizações".
Nos dias de hoje, por exemplo, embora seja sempre um conceito difícil de trabalhar, pode-se falar em algumas civilizações presentes no planeta, caracterizadas por distinções relevantes relacionadas aos seus aspectos culturais, religiosos, imaginários, identitários, e também envolvendo determinadas correlações políticas. Por exemplo, podemos pensar na chamada Civilização Ocidental como distinta de uma Civilização Islâmica; podemos pensar na China (na civilização chinesa) como um mundo a parte. Ou alguém pode propor um recorte civilizacional envolvendo a China, o Japão, e outros países orientais.
Claro que há sempre oscilações envolvidas quando consideramos essas unidades civilizacionais. Pensa-se geralmente em uma Civilização Ocidental para uma certa unidade identitária que pode ser estabelecida entre diversos países europeus e os países das Américas, que foram colonizados e ocupados populacionalmente, no início da modernidade, pelos europeus (portugueses, espanhóis, franceses, ingleses). Mas mesmo assim podemos lembrar que Samuel Huntington, em seu livro "O Choque das Civilizações" (1996), prefere pensar uma civilização à parte para a América Latina, e deixar o recorte de "civilização ocidental" apenas para a Europa e América do Norte (excetuado o México). Custava-lhe admitir que os mexicanos, brasileiros ou paraguaios fizessem parte da mesma civilização que a da Europa (excetuando a turquia européia) e a América do Norte. Aliás, ele incluiu também na "civilização ocidental" a Austrália, por sua ligação com o Reino Unido.
De todo modo, a noção difícil de Civilização Ocidental é muito trabalhada pelos historiadores, mas normalmente unindo Europa e Américas sem as distinções feitas por Huntington. Vamos pensar, apenas para trazer o exemplo dos espaços civilizacionais, na idéia de uma "Civilização Ocidental". De fato, há algo em comum entre um inglês, um francês, um brasileiro (é claro que os indígenas constituem uma situação à parte, mas deixemos por ora esta questão de lado). Eles falam línguas distintas, mas há uma certa origem cultural em comum, que remonta às instituições de outra civilização, histórica, a Civilização Greco-Romana, e há também um predomínio religioso, que é o das religiões que, de modo mais amplo, procuraremos enquadrar na instância do Cristianismo. Foi também essa civilização que desenvolveu historicamente o Capitalismo, e isto trouxe um certo padrão cultural, imaginário, algumas referências políticas. O inglês, o francês e o brasileiro, por mais distintos que sejam - e são realmente muito distintos - adquirem proximidades quando os comparamos com a Civilização Islâmica, por exemplo.
Este assunto é complexo, cheio de ambiguidades mal resolvidas, mas é nesta unidade mais ampla que os historiadores e filósofos se debruçam quando querem escrever a história de uma Civilização ou, de maneira mais ampla, uma História das Civilizações. Um trabalho fundacional neste sentido foi realizafo por Friedrich Hegel, filósofo alemão que, em sua "Filosofia da História" (1830), procurou indicar os caminhos para a composição de uma história dialética da civilizações, além de ter ensaiado, ele mesmo, a escrita desta história, como se fosse historiador.
O gênero - as "histórias das civilizações" - vingou. No século XIX muitos se empenharam em percorrê-lo, ainda que o grande peso de investimento dos historiadores desta época estivesse nas histórias nacionais. No século XX, temos dois exemplos emblemáticos de Histórias das Civilizações: os monumentais trabalhos de Spengler e de Arnold Toynbee.
A retomada do gênero por estes autores no século XX é de certa maneira tributária do contexto das Guerras Mundiais que começam a ditar a tônica deste novo século, introduzindo um elemento de apreensão em diversos intelectuais que começam a incorporar uma "consciência de risco" com relação às possibilidades de sobrevivência da espécie humana, e da civilização ocidental em particular. De fato, é sob o contexto dos grandes conflitos mundiais que o historiador inglês Arnold Toynbee (1889-1975) desenvolve seu Estudo de História em doze volumes (1934-1961), buscando reagir tanto contra os horrores das Guerras Mundiais como à historiografia nacionalista tradicional. Acreditava que teria sido este sentimento nacionalista o principal responsável pelos massacres expressos pela Primeira Grande Guerra, e a isto contrapunha a idéia de que não seria possível compreender a história universal – a única que valeria realmente a pena – nos quadros estreitos dos estados-nações. Estes, para ele, não seriam mais do que membros de um corpo bem maior, a Civilização, de modo que seria extremamente perniciosa a sua particularização em histórias isoladas – contrapartida teórica do recíproco digladiamento de que fora testemunha a Grande Guerra. Assim, para Toynbee, seria preciso sempre partir do todo – a História das Civilizações – para somente depois atingir as suas partes, representadas pelas histórias dos povos e nações. Ao mesmo tempo em que acompanha a idéia de um “ciclo vital” de cada civilização, já proposta por Spengler (1880-1936), a “filosofia da história” de Toynbee, se pudermos chamá-la assim, flutua sobre o pessimismo e a esperança, de modo que também encontraremos entre os textos do historiador inglês as seguintes palavras: “Creio na iminência de um mundo único, e creio que no século XXI a vida humana vai ser novamente uma unidade, em todos os aspectos e atividades. Creio que no campo da religião, o sectarismo vai ser subordinado ao ecumenismo; que no campo da política o nacionalismo vai ficar subordinado ao governo mundial; e que no campo do estudo dos assuntos humanos a especialização vai ser subordinada a uma visão abrangente”.
Também Fernando Braudel, pela mesma época em que Toynbee desenvolvia seu monumental estudo de história comparada das civilizações, ocupou-se destas unidades mais amplas que seriam as civilizações. Em "Mediterrâneo" (1949) ele toma uma grande unidade espacial no interior da qual pode examinar pelo menos duas grandes civilizações interagindo - a Ocidental e a Islâmica. E, posteriormente, escreve outra obra extremamente relevante para o assunto, com o título de "Gramática das Civiliações". Nesta obra, Braudel considera que as civilizações corresponderiam a grandes unidades sociais (conjuntos maiores de sociedades), assinaláveis pela predominância de certos bens culturais (materiais e imateriais), e estabelecidas sobre espaços definíveis dentro do qual se pode notar um movimento próprio. Por outro lado, o historiador francês não deixa de chamar atenção para os constantes e inevitáveis processos de transferências culturais que se estabelecem entre as civilizações e outras civilizações e áreas culturais. Com relação às diversas instâncias que conformam uma Civilização, Braudel assinala que elas são simultaneamente sociedades, espacialidades, economias, e mentalidades coletivas. De uma perspectiva histórica, vale assinalar que Braudel considera a civilização como um quadro histórico de longa duração que pode abarcar diversas sociedades não apenas no espaço, mas também no tempo.
O Espaço, e não apenas o Tempo e a Cultura, é um elemento a mais a ser considerado quando pensamos em civilizações. Mas devemos considerar este espaço prevendo um certo dinamismo, uma permanente reconstrução espacial, uma vez que, se uma Civilização estabelece-se necessariamente sobre um espaço, este, obviamente, vai mudando historicamente. No momento presente, é interessante verificar que o pequeno Mar Mediterrâneo (quando o comparamos com o Oceano Atlântico ou com o Oceano Pacífico), coloca-se como uma fronteira entre parte da Civilização ocidental (os países do sul da Europa) e as sociedades africanas, que para um europeu já parecem configurar efetivamente um outro mundo. Todavia, para adquirirmos maior consciência acerca da historicidade do espaço civilizacional, podemos realizar o exercício de pensar este mesmo espaço na época do Império Romano, a partir de Augusto e até os tempos de sua dissolução. O norte da África, para um romano, não era então um outro mundo. Os países do Norte da África eram províncias do Império Romano, e por isso mesmo os romanos chamavam ao Mar Mediterrâneo de "Mare Nostrum" (Nosso Mar). Para eles, as fronteiras espaciais de sua civilização ficavam um pouco mais abaixo, com o limite natural do deserto do Saara, por exemplo. A Oeste, havia o limite cósmico do Oceano Atlântico. Ninguém pensava que houvesse algo mais para além, e talvez o Atlântico parecesse aos romanos como o espaço que se estende para além da orbis terrestre, no mundo de hoje. A Leste, os romanos viam a fronteira do rio Tigre como o fim do seu espaço civilizacional, e os Rios Danúbio e Reno delimitavam muito claramente o seu mundo de um outro mundo, em relação a cujos habitantes eles julgavam correto se referirem como "bárbaros".
Hoje, contrastando com esta época, a Mesopotâmia é efetivamente um outro mundo em relação ao espaço civilizacional do ocidente. Os rios Reno e Danúbio estão perfeitamente inseridos dentro do espaço da civilização ocidental, herdeira identitária da antiga civilização Greco-Romana, conjuntamente com todos os países do Norte da Europa. A África do Norte, como já dissemos, é outro mundo para o imaginário de um homem ocidental nos dias de hoje. Estas oscilações históricas, a longo termo, permitem entrever as por vezes sutis interações entre Espaço e Civilizações.
Também é importante notar que as Civilizações não estão dadas de antemão, mas que são construções dos historiadores e cientistas sociais que se empenham em compreender unidades mais amplas. Às vezes, a Política dita esta construção, mas cada autor também pode repensar o seu próprio quadro de civilizações, com variações que podem ser motivadas por questões ideológicas, por exemplo. Assim, entre o período do pós-Guerra e a Queda do Muro de Berlim, em 1989, esse famoso muro que não mais existe era visto como fronteira de pedra separando duas realidades culturais e políticas que deviam se hostilizar mutuamente, para a boa conformação do jogo político internacional. A Rússia, que hoje é facilmente incorporada ao mundo ocidental, foi pintada pela construção de Samuel Huntington - intelectual a serviço da CIA que escreveu um livro intitulado "O Choque das Civilizações" - como fazendo parte de uma "civilização cristã oriental". Vemos aí como vão se dando as coisas. Para ele, tratava-se de partir o mundo religioso cristão em dois, para atender às reminiscências de uma espacialidade política gerada pelo mundo bipolarizado da Guerra Fria. Huntington escreve o primeiro ensaio sobre o choque das civilizações em 1993, quatro anos depois da queda do Muro, e sustentava a idéia de que as grandes identidades culturais e religiosas seriam as principais fontes de conflito no mundo posterior à Guerra Fria. Neste artigo de 1993, intitulado "Foreign Affairs", vemos as seguintes palavras:
“Minha hipótese é que a fonte fundamental de conflitos neste mundo novo não será principalmente ideológica ou econômica. As grandes divisões entre a humanidade e a fonte dominante de conflitos será cultural. Os Estados-nações continuarão a ser os atores mais poderosos no cenário mundial, mas os principais conflitos da política global ocorrerão entre países e grupos de diferentes civilizações. O choque de civilizações dominará a política global. As falhas geológicas entre civilizações serão as frentes de combate do futuro” (HUNTINGTON, 1993).
São muito discutidas e criticadas, nos dias de hoje, as teses de Huntington sobre o "Choque das Civilizações" (1996). Também o estudo de Toynbee, que visou elaborar uma história comparada das Civilizações, tanto causou admiração na sua própria época - em vista da poderosa erudição mostrada pelo autor para a sua composição historiográfica - como sofreu severas críticas posteriormente. Mas vale a pena revisitarmos este trabalho, pois foi particularmente emblemático para a história deste gênero historiográfico que podemos chamar de "História das Civilizações".
Para tal, leia o artigo "Arnold Toynbee e a História Comparada das Civilizações". Biblos. n°23/1, 2009. p.219-229. http://ning.it/g0Z2ks
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Referências:
BARROS, José D'Assunção. Teoria da História, vol I. Petrópolis: Editora Vozes, 2011.
BARROS, José D'Assunção. "Toynbee e a História Comparada das Civilizações". Biblos, . n°23/1, 2009. p.219-229
BRAUDEL, Fernando. Gramática das Civilizações. São Paulo: Martins Fontes,, 1987
HUNTINGTON, Samuel. O Choque das Civilizações. Rio de Janeiro: Objetiva,1997 [original: 1996]
SPENGLER, Oswald. The Decline of the West. Munich: Beck, 1920
TOYNBEE, Arnold. Study of History. Londres: Oxford University Press, 1934-1961. 12 vol. [Um Estudo da História. São Paulo: Martins Fontes, 1987].
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