sábado, 5 de fevereiro de 2011

História dos Conceitos

Breve, texto explicativo sobre a História dos Conceitos

sábado, 29 de janeiro de 2011

Espacialidades e Temporalidades da História

Nos dias de hoje, as identidades historiográficas tem sido construídas com um peso importante nas auto-definições de cada historiador em termos de modalidades historiográficas (campos históricos) com as quais ele dialoga, ou no interior de cujas conexões ele produz as suas pesquisas e elabora seus textos historiográficos. Desta maneira, são categorias identitárias importantes, para o historiador contemporâneo, expressões como "História Cultural", "História Política", "História Econômica", "Micro-História", "História Regional", para apenas citar alguns títulos da enorme miríade de campos históricos emque hoje é partilhado o saber e a prática historiográfica.


Por outro lado, os profissionais de História, sobretudo no âmbito do Ensino, mas também no universo institucional da Pesquisa, deve lidar alternadamente com uma série de categorias identitárias mais antigas e já tradicionais, que na verdade são já seculares para os historiadores. São as categorias que se referem a "espacialidades" e "temporalidades". Diz-se de um historiador - independente de suas conexões com a "história cultural", com a "história política" ou com a "micro-história" - que ele é um "medievalista", um historiador da "História Antiga", um historiador da "História da América", da "História da África", do Brasil-Império, e assim por diante. Estas categorias já são clássicas.

Embora o historiador não tenha nenhuma obrigação de se especializar em temporalidades ou espacialidades específicas, e seja cada vez mais comum encontrarmos os historiadores que se definem mais pelos "campos históricos" (História Econômica, História do Imaginário, História de Gênero, etc), é bastante comum que os historiadores sejam chamados a se especializarem em temporalidades ou espacialidades, particularmente quando assumem assentos universitários, já que os currículos de Graduação em História costumam se organizar em torno de uma tblatura que envolve sobretudo as espacialidades e temporalidades, com exceção da área de Teoria e Metodologia da História, que obviamente transcende este tipo de classificações.

Discorreremos, neste momento, sobre classificações relacionadas às ‘espacialidades’ e ‘temporalidades’. O critério das Temporalidades gera modalidades como a História Antiga, História Medieval, História Moderna, História Contemporânea. O critério das Espacialidades gera modalidades como a História Européia, a História da América, a História da África, a História do Brasil, ou as inúmeras histórias de realidades nacionais específicas. Uma ampliação da escala de observação espacial, em direção ao supra-nacional, pode gerar a História das Civilizações (se incorporarmos o conceito de “civilização”), ou, se pensarmos apenas em termos de um agregado planetário, um âmbito mais vasto denominado “História Universal”. Outras divisões relacionadas à espacialidade também podem ser pensadas, como a “História do Ocidente” ou “História do Oriente” (conceitos que sempre precisam ser problematizados, pois bem que poderia ser pensada uma “História do Hemisfério Sul” por oposição a uma “História do Hemisfério Norte”, se olhássemos para o planeta de acordo com uma outra leitura geopolítica). Por fim, é possível combinar “temporalidades” e “espacialidades” para gerar denominações específicas de modalidades históricas, como a “História da América Antiga”, a “História do Brasil Império”, ou a "História do Brasil República" (Quadro 2).

O Quadro abaixo foi construído relacionando no eixo das ordenadas as Temporalidades, e noeixo das abiscisas as Espacialidades. No encontro entre tempos e espaços, localizaremos as identidades historiográficas que habitualmente organizam nossos cursos de Graduação em História. O Quadro faz parte do livro "Teoria da História - volume 1: os conceitos fundamentais" (Petrópolis: Editora Vozes, 2011), a ser lançado em fevereiro deste mesmo ano.



Quadro 2: Modalidades da História por Espacialidade e Temporalidade. Alguns exemplos (Quadro extraído do livro Teoria da História (Petrópolis: Editora Vozes, 2011, vol1) e também incluído em artigo disponível em: http://ning.it/fiY5IC


Naturalmente que a combinação dos critérios da Espacialidade e da Temporalidade gera dilemas e problemas teóricos interessantes, nem sempre fáceis de resolver. Como situar a História do Império Romano, se este, em sua fase de maior expansão, abrangeu vastas regiões da Europa, Ásia e África? De igual maneira, o domínio grego, no período de apogeu militar das ligas Ateniense e Espartana, estendeu-se pela Europa e pela Ásia Menor, o que também inspira dilemas análogos[1]. Há ainda questões outras teóricas interessantes: embora a História Européia possa gerar as tradicionais divisões da História Antiga, da História Medieval, da História Moderna e da História Contemporânea, a História da América não se adéqua bem a esta tábua de leitura, uma vez que não há uma diferença plausível entre uma América Antiga e outra América Medieval que faça qualquer sentido para as sociedades que existiam no período pré-colombiano. De modo geral, denomina-se como “História da América Antiga” a todo o período da História da América que precede a colonização européia a partir da chegada dos espanhóis, dos portugueses, e depois dos ingleses. A série de “Histórias do Brasil”, em contrapartida, também tem as suas especificidades. Prefere-se dividi-la de acordo com sua situação no quadro político externo e interno: um ‘Brasil-Colônia’, um ‘Brasil Império’ já independente, e um ‘Brasil República’. Polêmicas conceituais também podem ocorrer quando estendemos para trás o olhar acerca de uma determinada realidade nacional. O Brasil do período colonial era já “Brasil”, ou seria melhor chamá-lo de “América Portuguesa”?[2].

Deve-se entender, antes de tudo, que os diversos critérios de divisão temporal, que hoje nos são tão familiares e corriqueiros a ponto de os discutirmos muito pouco, são eles mesmos históricos. Mais ainda, nem sempre foram tão gloriosos os começos de todos os “conceitos” que ocupam lugar de honra na Teoria da História. A “Idade Média”, por exemplo – uma modalidade temporal da História que tem sido universo de dedicação de alguns dos mais renomados historiadores europeus, tais como Marc Bloch, Georges Duby e Jacques Le Goff – traz na sua designação uma história à qual não faltaram as imposições depreciativas. Houve uma época em que a expressão “tempos médios” era empregada pela História Teológica para designar um momento da história mundana que já se demorava na sua função de preceder os “finais dos tempos”, estes nos quais um novo mundo se abriria definitivamente para os seres humanos considerados dignos da salvação, ao passo em que outros tantos mergulhariam na danação eterna. Mas depois, com o humanismo que começa a emergir na Itália da época de Petrarca (1304-1374), os “tempos médios” vão designar este longo período “bárbaro” e “sombrio” que se parecia se interpor de maneira incômoda entre o glorioso modelo da antiguidade clássica e os novos tempos humanistas que o queriam recuperar no trecento italiano[3]. Mas rigorosamente falando, tal como assinala Reinhart Koselleck (2006, p.271), parece ter sido Christoph Cellarius (1639-1707), em um manual escrito em 1685, um dos primeiros a já consolidar o uso da expressão “idade média” como designativo de uma das divisões da História Universal (1696), em uma obra que teve tanta repercussão que em 1753 já tinha atingido a sua 11ª edição[4]. A partir daí, “o conceito de Idade Média generalizou-se no século XVIII dos iluministas – quase sempre em sentido pejorativo – para transformar-se, no século XIX, em um topus fixo da periodização histórica” (KOSELLECK, 2006, p.271).

Estes exemplos em torno da trajetória de uma designação que percorre sentidos vários, entre outras investigações de trajetórias semânticas que poderiam se referir à “Idade Antiga”, “Idade Moderna”, “Idade Contemporânea”, “Modernidade”, “Pós-Modernidade” – mostram claramente a historicidade dos próprios conceitos e categorias utilizadas para abordar a questão mesma da ‘historicidade’[5]. Neste quadro de problemas teóricos, ocupam lugar de destaque as intrincadas polêmicas sobre os limites que separam determinadas temporalidades. Quando se encerra a Idade Antiga e inicia-se a Idade Medieval? De acordo com as distintas teorias sobre a desagregação, desarticulação, queda, declínio ou transformação cultural do Império Romano, as datas ou períodos de separação ou transição entre uma época e outra podem oscilar historiograficamente de modo considerável, e já foram propostas interpretações que sinalizam a passagem de um pra o outro período em momentos diversificados no interior de um período de consideráveis extensões que vai do século II ao século VIII. Novos conceitos também podem surgir destas oscilações interpretativas: a “Antiguidade Tardia” pode se estender Idade Média adentro, disputando territórios historiográficos com a “Alta Idade Média”[6]. Sobre isto, ver também http://ning.it/eJ9XEg, em artigo no qual discorremos sobre as ambiguidades relacionadas às fronteiras entre Antiguidade e Idade Média.

Também são igualmente ambíguas as fronteiras entre a Idade Média e a Idade Moderna[7], e ainda mais aquelas que podem ser estabelecidas ou propostas entre a Idade Moderna e a Idade Contemporânea[8]. De igual maneira, quando pensamos no mundo contemporâneo, que período estaríamos vivendo agora, nesta era tão peculiar que se inicia nas últimas décadas do século XX e que adentra o novo milênio: uma Idade Pós-Industrial?, um período Pós-Moderno?, uma fase avançada do Capitalismo Tardio? Surgirá um dia a “História Pós-Moderna”? Na medida em que avançarmos para o Futuro, será necessário redefinirmos toda a tábua tradicional de leitura habitualmente aceita para as temporalidades históricas, já que a “história contemporânea” de hoje será do passado, da mesma forma que a “história moderna” já não é mais moderna? A largas pinceladas, será útil rediscutir as modalidades temporais da História em termos de uma “História da Era Agrícola”, uma “História da Era Industrial”, e a mais recente “História da Era Digital”?

As subdivisões da História sempre geram problemas teóricos a serem resolvidos. Será desnecessário lembrar que a organização da História por modalidades internas que combinam os critérios da ‘espacialidade’ e da ‘temporalidade’ constituem apenas recursos para organizar o trabalho historiográfico em um primeiro momento, mas não são grilhões ou compartimentos para aprisionar os objetos históricos, que inúmeras vezes não correspondem aos espaços nacionais rigidamente estabelecidos, ou balizas temporais inflexíveis[9].

Veja o artigo do qual foram extraídos o Quadro e o texto acima em http://ning.it/fiY5IC
[BARROS, José D'Assunção. "Sobre o conceito de Campo Histórico". História-e-História. Unicamp: março de 2010]

O mesmo quadro e comentário podem ser encontrados em BARROS, José D'Assunção. Teoria da História - volume 1. Petrópolis: editora Vozes, 2011.


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Notas:

[1] Convocar a Civilização Greco-Romana para a História do ocidente, aliás, constitui já um ponto de vista teórico, e também ideológico. Há uma certa maneira de ver as coisas que permite escolher o mundo Greco-romano como uma das bases civilizacionais do Ocidente Cristão.
[2] América Portuguesa, por exemplo, foi o nome que um historiador no século XVIII – Rocha Pitta – preferiu para designar, em 1730, a vasta extensão sob domínio português que depois daria origem ao Brasil independente (1976).
[3] Sobre os primórdios da noção de uma “idade média sombria”, nos escritos de Petrarca, um estudo de referência é o de T. E. MOMMSEN, 1942, p.226-242.
[4] A expressão “idades médias”, ou “tempos médios”, já aparece no século XV com os humanistas italianos Leonardo Bruni (c.1374-1444) e Flávio Biondo (c.1362-1493); e, antes dele, conforme já foi ressaltado, Petrarca se referira aos “tempos sombrios” que se situavam entre a Antiguidade Greco-Romana e os novos tempos que começavam a retomar mais enfaticamente as referências da antiguidade clássica. Mas o uso da expressão “Idade Média” como claro designativo de um período de tempo a ser inserido em uma estrutura tripartida para a compreensão da história pode ser mesmo atribuído ao erudito alemão Christoph Cellarius, que já divide a sua História Universal nos períodos “Antigo”, “Medieval” e “Novo”.
[5] Também a tendência a pensar nos séculos como unidades de sentido histórico tem a sua história, como tão bem assinala Reinhart Koselleck: “[...] a partir do século XVII eles [os séculos] adquirem cada vez mais pretensões históricas próprias. Passam a ser entendidos como unidades coerentes de sentido. O século do Iluminismo já é pensado assim pelos contemporâneos, estando consciente, por exemplo em Voltaire, de ser diferente do século de Luís XIV” (KOSELLECK, 2006, p.283).
[6] Na Alemanha, Alois Riegl, com seu livro sobre a arte nos últimos tempos da Roma Antiga (Arte Tardo-romana) foi dos primeiros a popularizar o conceito de Spätantike (“Antiguidade Tardia”). Mais recentemente, o historiador irlandês Peter Brown (n.1935) consolidou o uso do conceito na língua inglesa, com os livros The World of Late Antiquity (1971) e The Making of Late Antiquity (1978). Para Brown, a “Antiguidade Tardia” não corresponderia a um período de declínio, mas a um tempo de recomeços, de novas redefinições sociais e culturais que, ainda assim, poderiam ser localizadas dentro dos quadros da Idade Antiga.
[7] Os processos e eventos sinalizadores da Idade Moderna, muito evocados para a delimitação deste período, são vários, entre os quais a (1) Reforma – que institui definitivamente um mundo cristão dividido em várias Igrejas, quebrando de uma vez por todas a pretensão de controle papal sobre toda a religiosidade cristã – bem como (2) o fortalecimento das monarquias absolutas, (3) o deslocamento, em relação ao eixo marítimo principal, do Mediterrâneo para o Atlântico, (4) a expansão européia através das grandes navegações, com a subsequente conquista das Américas, e (5) a mundialização através do comércio de longo alcance. Outro evento importante, que chegou mesmo a ser estabelecido como marco, foi (6) a tomada de Constantinopla pelos turcos, colocando um fim no Império Bizantino, que persistira e resistira durante todo o período medieval, e firmando as fronteiras da expansão islâmica contra a cristandade. Em termos do paradigma apoiado no Materialismo Histórico, (7) o declínio do ‘modo de produção feudal’, apesar de suas persistências até períodos avançados do Antigo Regime, permite que por esta mesma época de transição se entreveja a formação de um modo de produção capitalista, ainda na sua fase mercantilista.
[8] Na historiografia européia, convencionou-se pensar nos marcos da Revolução Francesa e do movimento de Independência Americana como sinalizadores iniciais de um novo período que seria chamado de “História Contemporânea”. Embora sejam sinalizadores carregados de euro-centrismo, e mesmo de franco-centrismo, a escolha do período iluminista como marco inicial da contemporaneidade encontra respaldo na percepção de que os iluministas, e particularmente os homens envolvidos com as lutas revolucionárias na França, passaram a incorporar um sentimento intenso de que estavam fazendo história no seu próprio tempo presente, sendo já personagens de uma nova era. De modo geral, mesmo os historiadores fora da França e em período posterior não questionaram a validade deste marco ou de uma distinção entre a “história contemporânea” e a “história moderna”. Koselleck, no capítulo “Modernidade” de seu Futuro Passado (1979), registra as seguintes observações sobre Ranke: “Ranke, enquanto ensinou, sempre de novo se referia à ‘história dos tempos mais recentes’ ou ‘história contemporânea’, que, dependendo da temática, ele fazia começar com o velho Frederico [rei da Prússia] ou com a Revolução Francesa ou a Americana. Só quando falava da história que lhe era contemporânea é que se desviava do uso lingüístico tradicional, chamando-a de ‘história de nosso tempo’” (KOSELLECK, 1979, p.281). Prenuncia-se então, também aqui, um novo conceito que seria o da “História do Tempo Presente”. Com relação ao “sentimento do novo” entre os europeus do final do século XVIII, é também Koselleck (p.180) quem traz à luz esta passagem de H. G. M. Köster, escrita em 1787 para o verbete “História” da Enciclopédia Alemã: “quase toda a Europa ganhou uma configuração totalmente diferente {...} e quase aparecer nesta parte do mundo uma nova raça de homens” (KÖSTER, Deutsche Encyclopedie, 1787, p.657). / De resto, cumpre observar que a passagem da Idade Moderna para a Idade Contemporânea tem como processo distintivo importante o advento da Era Industrial.
[9] Sobre isto, Paul Veyne faz uma interessante observação: “Uma vez que todo acontecimento é tão histórico quanto um outro, pode-se dividir o campo factual com toda liberdade. Como se explica que ainda se insiste em dividi-lo tradicionalmente segundo o espaço e o tempo, ‘história da França’ ou ‘o século XVII’, segundo singularidades e não especificidades? Por que ainda são raros livros intitulados: ‘O Messianismo revolucionário através da História?’, ‘As Hierarquias Sociais de 1450 a nossos dias, na França, China, Tibet e URSS’ ou ‘paz e guerra entre as nações’, para parafrasear títulos de três obras recentes? Não seria uma sobrevivência da adesão original à singularidade dos acontecimentos e do passado nacional?” (VEYNE, 1982, p.42).




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Referências:

BARROS, José D’Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Vozes, 2008 (6ª ed.) [orig.: 2004].
BROWN, Peter, o Fim do Mundo Antigo, Lisboa: Verbo, 1971.
CELLARIUS, Christoph. Historia Universalis. Altemburg: 1753, 11ª edição [originais dos três volumes: 1696, 1704, e póstumo 1708].
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado – contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006 [original: 1979].
KOSTER, H. M. G. “Historie” in: Deutsche Encyclopädie oder Algemeines Real-Wörterbuch aller Künste und Wissenschaften. Frankfurt: Koster und Ross, 1787. vol.XII.
MOMMSEN, T. E. Petrarch’s Conception of the ‘Dark Ages’. Speculum. n°17, 1942, p.226-242.
ROCHA PITTA. História da América Portuguesa. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976 [original: 1730].
VEYNE, Paul. Como se Escreve a História. Brasília: UNB, 1982 [original: 1971].

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

História das Civilizações

A possibilidade de se pensar em uma História das Civilizações requer uma visão mais ampla do que a habitual em relação ao universo cultural humano, transcendendo as fronteiras nacionais de modo a permitir operacionalizar o conceito de "civilização". O que vem a ser uma "civilização"? Podemos pensar na civilização como um recorte cultural e identitário mais abrangente, que se refere a conjuntos populacionais que podem abarcar vários paízes, e que, ao mesmo tempo, parecem se opor a outros recortes análogos, isto é, a outras "civilizações".


Nos dias de hoje, por exemplo, embora seja sempre um conceito difícil de trabalhar, pode-se falar em algumas civilizações presentes no planeta, caracterizadas por distinções relevantes relacionadas aos seus aspectos culturais, religiosos, imaginários, identitários, e também envolvendo determinadas correlações políticas. Por exemplo, podemos pensar na chamada Civilização Ocidental como distinta de uma Civilização Islâmica; podemos pensar na China (na civilização chinesa) como um mundo a parte. Ou alguém pode propor um recorte civilizacional envolvendo a China, o Japão, e outros países orientais.

Claro que há sempre oscilações envolvidas quando consideramos essas unidades civilizacionais. Pensa-se geralmente em uma Civilização Ocidental para uma certa unidade identitária que pode ser estabelecida entre diversos países europeus e os países das Américas, que foram colonizados e ocupados populacionalmente, no início da modernidade, pelos europeus (portugueses, espanhóis, franceses, ingleses). Mas mesmo assim podemos lembrar que Samuel Huntington, em seu livro "O Choque das Civilizações" (1996), prefere pensar uma civilização à parte para a América Latina, e deixar o recorte de "civilização ocidental" apenas para a Europa e América do Norte (excetuado o México). Custava-lhe admitir que os mexicanos, brasileiros ou paraguaios fizessem parte da mesma civilização que a da Europa (excetuando a turquia européia) e a América do Norte. Aliás, ele incluiu também na "civilização ocidental" a Austrália, por sua ligação com o Reino Unido.

De todo modo, a noção difícil de Civilização Ocidental é muito trabalhada pelos historiadores, mas normalmente unindo Europa e Américas sem as distinções feitas por Huntington. Vamos pensar, apenas para trazer o exemplo dos espaços civilizacionais, na idéia de uma "Civilização Ocidental". De fato, há algo em comum entre um inglês, um francês, um brasileiro (é claro que os indígenas constituem uma situação à parte, mas deixemos por ora esta questão de lado). Eles falam línguas distintas, mas há uma certa origem cultural em comum, que remonta às instituições de outra civilização, histórica, a Civilização Greco-Romana, e há também um predomínio religioso, que é o das religiões que, de modo mais amplo, procuraremos enquadrar na instância do Cristianismo. Foi também essa civilização que desenvolveu historicamente o Capitalismo, e isto trouxe um certo padrão cultural, imaginário, algumas referências políticas. O inglês, o francês e o brasileiro, por mais distintos que sejam - e são realmente muito distintos - adquirem proximidades quando os comparamos com a Civilização Islâmica, por exemplo.

Este assunto é complexo, cheio de ambiguidades mal resolvidas, mas é nesta unidade mais ampla que os historiadores e filósofos se debruçam quando querem escrever a história de uma Civilização ou, de maneira mais ampla, uma História das Civilizações. Um trabalho fundacional neste sentido foi realizafo por Friedrich Hegel, filósofo alemão que, em sua "Filosofia da História" (1830), procurou indicar os caminhos para a composição de uma história dialética da civilizações, além de ter ensaiado, ele mesmo, a escrita desta história, como se fosse historiador.

O gênero - as "histórias das civilizações" - vingou. No século XIX muitos se empenharam em percorrê-lo, ainda que o grande peso de investimento dos historiadores desta época estivesse nas histórias nacionais. No século XX, temos dois exemplos emblemáticos de Histórias das Civilizações: os monumentais trabalhos de Spengler e de Arnold Toynbee.

A retomada do gênero por estes autores no século XX é de certa maneira tributária do contexto das Guerras Mundiais que começam a ditar a tônica deste novo século, introduzindo um elemento de apreensão em diversos intelectuais que começam a incorporar uma "consciência de risco" com relação às possibilidades de sobrevivência da espécie humana, e da civilização ocidental em particular. De fato, é sob o contexto dos grandes conflitos mundiais que o historiador inglês Arnold Toynbee (1889-1975) desenvolve seu Estudo de História em doze volumes (1934-1961), buscando reagir tanto contra os horrores das Guerras Mundiais como à historiografia nacionalista tradicional. Acreditava que teria sido este sentimento nacionalista o principal responsável pelos massacres expressos pela Primeira Grande Guerra, e a isto contrapunha a idéia de que não seria possível compreender a história universal – a única que valeria realmente a pena – nos quadros estreitos dos estados-nações. Estes, para ele, não seriam mais do que membros de um corpo bem maior, a Civilização, de modo que seria extremamente perniciosa a sua particularização em histórias isoladas – contrapartida teórica do recíproco digladiamento de que fora testemunha a Grande Guerra. Assim, para Toynbee, seria preciso sempre partir do todo – a História das Civilizações – para somente depois atingir as suas partes, representadas pelas histórias dos povos e nações. Ao mesmo tempo em que acompanha a idéia de um “ciclo vital” de cada civilização, já proposta por Spengler (1880-1936), a “filosofia da história” de Toynbee, se pudermos chamá-la assim, flutua sobre o pessimismo e a esperança, de modo que também encontraremos entre os textos do historiador inglês as seguintes palavras: “Creio na iminência de um mundo único, e creio que no século XXI a vida humana vai ser novamente uma unidade, em todos os aspectos e atividades. Creio que no campo da religião, o sectarismo vai ser subordinado ao ecumenismo; que no campo da política o nacionalismo vai ficar subordinado ao governo mundial; e que no campo do estudo dos assuntos humanos a especialização vai ser subordinada a uma visão abrangente”.

Também Fernando Braudel, pela mesma época em que Toynbee desenvolvia seu monumental estudo de história comparada das civilizações, ocupou-se destas unidades mais amplas que seriam as civilizações. Em "Mediterrâneo" (1949) ele toma uma grande unidade espacial no interior da qual pode examinar pelo menos duas grandes civilizações interagindo - a Ocidental e a Islâmica. E, posteriormente, escreve outra obra extremamente relevante para o assunto, com o título de "Gramática das Civiliações". Nesta obra, Braudel considera que as civilizações corresponderiam a grandes unidades sociais (conjuntos maiores de sociedades), assinaláveis pela predominância de certos bens culturais (materiais e imateriais), e estabelecidas sobre espaços definíveis dentro do qual se pode notar um movimento próprio. Por outro lado, o historiador francês não deixa de chamar atenção para os constantes e inevitáveis processos de transferências culturais que se estabelecem entre as civilizações e outras civilizações e áreas culturais. Com relação às diversas instâncias que conformam uma Civilização, Braudel assinala que elas são simultaneamente sociedades, espacialidades, economias, e mentalidades coletivas. De uma perspectiva histórica, vale assinalar que Braudel considera a civilização como um quadro histórico de longa duração que pode abarcar diversas sociedades não apenas no espaço, mas também no tempo.

O Espaço, e não apenas o Tempo e a Cultura, é um elemento a mais a ser considerado quando pensamos em civilizações. Mas devemos considerar este espaço prevendo um certo dinamismo, uma permanente reconstrução espacial, uma vez que, se uma Civilização estabelece-se necessariamente sobre um espaço, este, obviamente, vai mudando historicamente. No momento presente, é interessante verificar que o pequeno Mar Mediterrâneo (quando o comparamos com o Oceano Atlântico ou com o Oceano Pacífico), coloca-se como uma fronteira entre parte da Civilização ocidental (os países do sul da Europa) e as sociedades africanas, que para um europeu já parecem configurar efetivamente um outro mundo. Todavia, para adquirirmos maior consciência acerca da historicidade do espaço civilizacional, podemos realizar o exercício de pensar este mesmo espaço na época do Império Romano, a partir de Augusto e até os tempos de sua dissolução. O norte da África, para um romano, não era então um outro mundo. Os países do Norte da África eram províncias do Império Romano, e por isso mesmo os romanos chamavam ao Mar Mediterrâneo de "Mare Nostrum" (Nosso Mar). Para eles, as fronteiras espaciais de sua civilização ficavam um pouco mais abaixo, com o limite natural do deserto do Saara, por exemplo. A Oeste, havia o limite cósmico do Oceano Atlântico. Ninguém pensava que houvesse algo mais para além, e talvez o Atlântico parecesse aos romanos como o espaço que se estende para além da orbis terrestre, no mundo de hoje. A Leste, os romanos viam a fronteira do rio Tigre como o fim do seu espaço civilizacional, e os Rios Danúbio e Reno delimitavam muito claramente o seu mundo de um outro mundo, em relação a cujos habitantes eles julgavam correto se referirem como "bárbaros".

Hoje, contrastando com esta época, a Mesopotâmia é efetivamente um outro mundo em relação ao espaço civilizacional do ocidente. Os rios Reno e Danúbio estão perfeitamente inseridos dentro do espaço da civilização ocidental, herdeira identitária da antiga civilização Greco-Romana, conjuntamente com todos os países do Norte da Europa. A África do Norte, como já dissemos, é outro mundo para o imaginário de um homem ocidental nos dias de hoje. Estas oscilações históricas, a longo termo, permitem entrever as por vezes sutis interações entre Espaço e Civilizações.

Também é importante notar que as Civilizações não estão dadas de antemão, mas que são construções dos historiadores e cientistas sociais que se empenham em compreender unidades mais amplas. Às vezes, a Política dita esta construção, mas cada autor também pode repensar o seu próprio quadro de civilizações, com variações que podem ser motivadas por questões ideológicas, por exemplo. Assim, entre o período do pós-Guerra e a Queda do Muro de Berlim, em 1989, esse famoso muro que não mais existe era visto como fronteira de pedra separando duas realidades culturais e políticas que deviam se hostilizar mutuamente, para a boa conformação do jogo político internacional. A Rússia, que hoje é facilmente incorporada ao mundo ocidental, foi pintada pela construção de Samuel Huntington - intelectual a serviço da CIA que escreveu um livro intitulado "O Choque das Civilizações" - como fazendo parte de uma "civilização cristã oriental". Vemos aí como vão se dando as coisas. Para ele, tratava-se de partir o mundo religioso cristão em dois, para atender às reminiscências de uma espacialidade política gerada pelo mundo bipolarizado da Guerra Fria. Huntington escreve o primeiro ensaio sobre o choque das civilizações em 1993, quatro anos depois da queda do Muro, e sustentava a idéia de que as grandes identidades culturais e religiosas seriam as principais fontes de conflito no mundo posterior à Guerra Fria. Neste artigo de 1993, intitulado "Foreign Affairs", vemos as seguintes palavras:


“Minha hipótese é que a fonte fundamental de conflitos neste mundo novo não será principalmente ideológica ou econômica. As grandes divisões entre a humanidade e a fonte dominante de conflitos será cultural. Os Estados-nações continuarão a ser os atores mais poderosos no cenário mundial, mas os principais conflitos da política global ocorrerão entre países e grupos de diferentes civilizações. O choque de civilizações dominará a política global. As falhas geológicas entre civilizações serão as frentes de combate do futuro” (HUNTINGTON, 1993).


São muito discutidas e criticadas, nos dias de hoje, as teses de Huntington sobre o "Choque das Civilizações" (1996). Também o estudo de Toynbee, que visou elaborar uma história comparada das Civilizações, tanto causou admiração na sua própria época - em vista da poderosa erudição mostrada pelo autor para a sua composição historiográfica - como sofreu severas críticas posteriormente. Mas vale a pena revisitarmos este trabalho, pois foi particularmente emblemático para a história deste gênero historiográfico que podemos chamar de "História das Civilizações".


Para tal, leia o artigo "Arnold Toynbee e a História Comparada das Civilizações". Biblos. n°23/1, 2009. p.219-229. http://ning.it/g0Z2ks



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Referências:

BARROS, José D'Assunção. Teoria da História, vol I. Petrópolis: Editora Vozes, 2011.
BARROS, José D'Assunção. "Toynbee e a História Comparada das Civilizações". Biblos, . n°23/1, 2009. p.219-229
BRAUDEL, Fernando. Gramática das Civilizações. São Paulo: Martins Fontes,, 1987
HUNTINGTON, Samuel. O Choque das Civilizações. Rio de Janeiro: Objetiva,1997 [original: 1996]
SPENGLER, Oswald. The Decline of the West. Munich: Beck, 1920
TOYNBEE, Arnold. Study of History. Londres: Oxford University Press, 1934-1961. 12 vol. [Um Estudo da História. São Paulo: Martins Fontes, 1987].

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

História Comparada

A História Comparada é um campo histórico que se refere tanto a um ‘modo específico de observar a história’ como à escolha de um ‘campo de observação’ específico – mais propriamente falando, uma espécie de “duplo campo de observação”, ou mesmo um “múltiplo campo de observação”. Situa-se portanto entre aqueles campos históricos que são definidos por uma “abordagem” específica – por um modo próprio de fazer a história, de observar os fatos ou de analisar as fontes. Resumindo em duas indagações que a tornam possível, a História Comparada pergunta simultaneamente: “o que observar?” e “como observar?”. E dá respostas efetivamente originais a estas duas indagações.

Para compreender de que maneira a História Comparada responde a estas duas questões fundamentais, será imprescindível mergulharmos na compreensão deste gesto fundador – a “comparação” – que dá o próprio nome e uma substância específica a esta modalidade historiográfica. Antes de mais nada, consideraremos que “comparar” é uma maneira bastante específica de propor e pensar as questões. Freqüentemente nos defrontamos com esta forma intuitiva de abordagem quando nos deparamos na vida cotidiana com situações novas, e neste caso a comparação nos ajuda a precisamente a compreender a partir de bases mais conhecidas e seguras aquilo que nos é apresentado como novo, seja identificando semelhanças ou diferenças. Comparar é um gesto espontâneo, uma prática que o homem exercita nas suas atividades mais corriqueiras, mas que surge com especial intensidade e necessidade quando ele tem diante de si uma situação nova ou uma realidade estranha.

A comparação neste momento – diante do desafio ou da necessidade – impõe-se como método. Trata-se de iluminar um objeto ou situação a partir de outro, mais conhecido, de modo que o espírito que aprofunda esta prática comparativa dispõe-se a fazer analogias, a identificar semelhanças e diferenças entre duas realidades, a perceber variações de um mesmo modelo. Por vezes, será possível ainda a prática da “iluminação recíproca”, um pouco mais sofisticada, que se dispõe a confrontar dois objetos ou realidades ainda não conhecidos de modo a que os traços fundamentais de um ponham em relevo os aspectos do outro, dando a perceber as ausências de elementos em um e outro, as variações de intensidade relativas à mútua presença de algum elemento em comum. Será por fim possível, se o que se observa são dois objetos ou realidades dinâmicas em transformação, verificar como os elementos identificados através da comparação vão variando em alguma direção mais específica – de modo que se possa identificar um certo padrão de transformações no decurso de um tempo – e, mais ainda, se temos duas realidades contíguas, como uma influencia a outra, e como as duas a partir da relação recíproca terminam por se transformar mutuamente.

Já nestes níveis de análise, a comparação não mais se mostra um mero gesto intuitivo, de domínio comum e cotidiano, mas sim um método próprio que oferece àquele que a utiliza determinadas potencialidades e certos limites, forçando-o antes de mais nada a definir o que pode e o que não pode ser comparado, a refletir sobre as condições em que esta comparação pode se estabelecer, a formular estratégias e modos específicos para a observação mais sistematizada das diferenças e variações, acrescentando-se ainda a necessária reflexão de que alguns tipos de objetos permitem este ou aquele modo de observação e de análise, e não outro. Seria oportuno, aqui, indagar pela natureza do momento em que o gesto comparativo passa da prática intuitiva e espontânea para outro patamar, onde se erige em método, em escolha tornada consciente e acompanhada de autocrítica, de procedimentos, de sistematização.

Evocaremos neste momento a contribuição bastante específica de Marc Bloch para a História Comparada, que nas mãos do historiador francês torna-se antes de tudo uma “História Comparada Problema”. Para além desta introdução fundamental da História Comparada no ambiente da “História-Problema” proposto pelos Annales, Bloch teve grande importância como sistematizador do método comparativo de maneira geral, seja a partir de suas considerações teóricas – expressas em dois textos importantes[1] – seja a partir de suas realizações práticas. Será imprescindível compreender, neste caso, o seu esforço de sistematização – este que hoje pode beneficiar os historiadores comparatistas de diversificadas vertentes.

Para melhor clarificar os conceitos fundacionais relacionados à questão da História Comparada, de acordo com a via que se consolidaria a partir de Marc Bloch, convém antes de mais nada distinguir a “História Comparada “propriamente dita – vista aqui como um campo intradisciplinar específico – do “comparativismo histórico”, em sentido mais amplo.

De um modo ou de outro, o historiador sempre utilizou a comparação como parte de seus recursos para compreender as sociedades no tempo, embora não necessariamente como um método sistematizado. De todo modo, poderemos lembrar aqui a formulação de Paul Veyne, que retoma um pressuposto de Giambatista Vico e considera que “toda história é história comparada” (VEYNE, 1983)[2]. Sobre esta questão, diremos que – mesmo quando nos referimos ao comparativismo como método – é evidente que poderemos sempre atribuir um sentido mais específico ao “comparativismo histórico” como abordagem possível, e não como algo que estaria implícito a todo o “fazer histórico” consoante a fórmula enunciada por Veyne. “Comparar”, “elencar semelhanças e diferenças” e “estabelecer analogias” são naturalmente ações tão familiares ao historiador como contextualizar os acontecimentos ou dialogar com as suas fontes. Mas para falarmos em um “método comparativo” é preciso, tal como já pontuamos no início deste ensaio, ultrapassar aquele uso mais próximo da intuição e da utilização cotidiana da comparação para alcançar um nível de observação e análise mais profundo e sistematizado, para o qual “o que se pode comparar” e o “como se compara” tornam-se questões relevantes, fundadoras de um gesto metodológico.

Posto isto, já para definir a “História Comparada” como um campo específico, consideraremos ainda que será preciso se ter em vista uma modalidade que não apenas lança mão do “comparativismo histórico” como método – por exemplo, como método aplicável à análise de determinados tipos de fontes ou séries de acontecimentos – e sim como uma modalidade que estabelece campos de trabalho ou de observação muito bem delineados. A História Comparada, antes do mais, seria uma modalidade historiográfica que atua de forma simultânea e integradora sobre campos de observação diferenciados e bem delimitados – campos, a bem dizer, que ela mesma constitui e delineia. Para o caso daquele tipo de História Comparada que coloca em confronto duas realidades nacionais diferenciadas, estes campos podem ter até suas bases já admitidas por antecipação, é verdade, mas sempre é bom se ter em vista que os universos a serem comparados nas ciências humanas são sempre de algum modo construções do próprio historiador ou do cientista social – não são necessariamente conjuntos já dados ou passíveis de serem admitidos previamente, frisaremos aqui.

Esta bem fundamentada perspectiva de comparativismo histórico tem como um de seus marcos teóricos mais importantes o célebre VI° Congresso Internacional de Ciências Históricas de Oslo (1928), no qual Marc Bloch desenvolveria uma conferência – logo transformada no já mencionado artigo – que objetivava refletir precisamente sobre as potencialidades do estudo comparado na História (BLOCH, 1928). Na verdade, estas considerações teóricas de Bloch sobre o comparativismo histórico podem ser consideradas uma decorrência de sua primeira realização prática neste sentido: a obra Os Reis Taumaturgos (BLOCH, 1993), que havia sido publicada alguns anos antes, em 1924. Será oportuno retomarmos, neste momento, as reflexões de Marc Bloch sobre o comparativismo histórico, pronunciadas no Congresso de Oslo.

Em primeiro lugar, Marc Bloch procura fixar os requisitos fundamentais sobre os quais poderia ser constituída uma História Comparada que realmente fizesse sentido. Sua conclusão é a de que dois aspectos irredutíveis seriam imprescindíveis: de um lado uma certa similaridade dos fatos, de outro, certas dessemelhanças nos ambientes em que esta similaridade ocorria. A semelhança e a diferença, conforme se vê, estabelecem aqui um jogo perfeitamente dinâmico e vivo: sem analogias, e sem diferenças, não e possível se falar em uma autêntica História Comparada. De igual maneira, Bloch visualizou dois grandes caminhos que poderiam ser percorridos pelos historiadores dispostos a lançar mão do comparativismo na História. Seria possível comparar sociedades distantes no tempo e no espaço, ou, ao contrário, sociedades com certa contigüidade espacial e temporal. No caso da comparação de sociedades distanciadas no espaço e no tempo tinha-se uma situação singular: a ausência de interinfluências entre as duas sociedades examinadas. Neste caso, o trabalho consistiria basicamente na busca de analogias – situação para a qual poderemos exemplificar com a possibilidade de estabelecer uma comparação entre o que se poderia chamar de “feudalismo europeu” e o que poderia ser denominado “feudalismo japonês”, duas realidades afastadas no espaço, em uma época em que não poderiam transmitir influências uma à outra[3]. Os riscos típicos deste caminho representado pela possibilidade de comparação entre sociedades não-contíguas é naturalmente o da falsa analogia ou do “anacronismo” – transplante de um modelo válido para uma época ou espacialidade social para um outro contexto histórico onde o modelo não tenha sentido real, correspondendo apenas a uma ficção estabelecida pelo próprio historiador.

Quando nos referimos a “sociedades contíguas”, teremos em vista que o próprio conceito de contigüidade muda de uma época em relação à outra. Na época da mundialização, e mais ainda, no período da globalização, duas sociedades afastadas espacialmente tem possibilidades imediatas de inter-influência, não correspondendo à situação estanque que se tinha nos períodos em que a comunicação era menos imediata. De igual maneira, cabe salientar que a comparação não precisa relacionar necessariamente realidades nacionais distintas, podendo corresponder também a ambientes sociais distintos, que se pretenda comparar.

Posto isso, consideraremos o segundo grande caminho apontado por Marc Bloch para uso da comparação histórica – na verdade aquele que ele mesmo preconizava como preferível. Trata-se aqui de comparar sociedades próximas no tempo e no espaço, que exerçam influências recíprocas. A vantagem de comparar sociedades contíguas está precisamente em abrir a percepção do historiador para as influências mútuas, o que também o coloca em posição favorável para questionar falsas causas locais e esclarecer, por iluminação recíproca, as verdadeiras causas, interrelações ou motivações internas de um fenômeno e as causas ou fatores externos. Será importante ainda salientar que, para empreender este caminho da História Comparada que atua sob realidades históricas contíguas – por exemplo, duas realidades nacionais sincrônicas – o historiador deve estar apto a identificar não apenas as semelhanças como também as diferenças. O exemplo mais concreto que Marc Bloch pôde oferecer desta abordagem, já aplicada a uma investigação histórica específica, foi a sua primorosa obra de 1924: Os Reis Taumaturgos (1993). Ao mesmo tempo, o artigo teórico elaborado em 1928 pelo historiador francês tornou-se uma espécie de pedra fundamental da História Comparada, no qual já veremos claramente os caminhos privilegiados por Marc Bloch no interior desta modalidade historiográfica em formação:


“Estudar paralelamente sociedades vizinhas e contemporâneas, constantemente influenciadas umas pelas outras, sujeitas em seu desenvolvimento, devido a sua proximidade e a sua sincronização, à ação das mesmas grandes causas, e remontando, ao menos parcialmente, a uma origem comum” (BLOCH, 1928: 19)


O que se havia realizado em Os Reis Taumaturgos senão este modelo? Teremos aqui duas sociedades medievais vizinhas – a francesa e a inglesa – ambas com um imaginário em comum e com repertórios de representações similares, que serão investigados pelo historiador à luz de um mesmo problema comum que os atravessa: o da crença popular no poder taumatúrgico de seus reis. As duas sociedades se inter-influenciam; as duas cortes que se beneficiam das representações taumatúrgicas – a capetíngia na França e a plantageneta na Inglaterra – rivalizam uma com a outra, movimentam-se, mesmo, no contexto desta iluminação e rivalidade recíprocas. O material histórico adequa-se, portanto, ao caminho proposto pelo modelo preconizado por Bloch: duas sociedades sincrônicas que guardam entre si relações interativas, e que juntas oferecem uma visão clara de um problema comum que as atravessa. Sem uma ou outra, no mero âmbito de uma história nacional, não poderia ser compreendida a questão da apropriação política do imaginário taumatúrgico que se desenvolve nas monarquias européias, das origens em comum deste mesmo imaginário, das intertextualidades que se estabelecem, do confronto do modelo taumatúrgico com outros modelos de realeza. Assim, História Comparada das realezas francesa e inglesa através do imaginário taumatúrgico contribui, de algum modo, para compreender a Europa de maneira mais plena.

Desde a época de Bloch, e sobretudo a partir da segunda metade do século XX, muitas foram as contribuições enquadráveis no âmbito da História Comparada. Pode-se dizer que o enriquecimento da História Comparada enquanto campo que já começa a se definir em meados do século dá-se em dois níveis: por um lado com o crescimento de diálogos interdisciplinares da História com outros campos do saber, como a Antropologia, a Sociologia, a Geografia e a Economia; por outro lado, através de uma maior variedade de escalas de observação a partir das quais se organizam as diversas perspectivas de exercício do comparativismo histórico. A variação na escala de comparação – o âmbito civilizacional, nacional, regional, local, intra-urbano, e assim por diante – desemboca, por fim, na possibilidade de comparar grupos étnicos ou identitários, práticas culturais mais específicas, realidades literárias, havendo mesmo os trabalhos de historiografia comparada, como um campo a mais de interesses.



Leia o início e a continuação deste artigo em: http://ning.it/igoCy1

[BARROS, José D'Assunção. "História Comparada - da contribuição de Marc Bloch à constituição de um moderno campodisciplinar". História Social (Revista da Unicamp). vol.13, 2007, 7-21. http://ning.it/igoCy1

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Notas:

[1] (1) BLOCH, 1928 : p.15-50. (2) BLOCH, 1930.
[2] Referindo-se a um outro âmbito de questões, também Witold Kula ressalta a idéia de que nenhum trabalho científico, por limitado e monográfico que seja, pode dispensar totalmente o método comparativo, o que inclui a História (KULA, 1973: 571).
[3] Um exemplo de História Comparada envolvendo sociedades distanciadas, agora relativamente às suas temporalidades, está na pesquisa de Robert Darnton sobre a Censura, a qual o historiador americano examina em três espaço-tempos bem diversificados: A França do Antigo Regime, a Índia britânica do século XIX, e a Alemanha Oriental do século XX (cf. “Entrevista com Robert Darnton” in PALLARES-BURKE, 2000).

domingo, 23 de janeiro de 2011

História Serial e História Quantitativa

A História Serial está entre algumas das modalidades historiográficas mais emblemáticas do último século, uma vez que contribuiu para a constituição de um influente paradigma que praticamente hegemoniza todo um setor da historiografia francesa entre os anos 1940 e 1970. Quando surgiu, a História Serial chegou a ser vista como uma revolução nas relações do historiador com as suas fontes, e alguns chegaram mesmo a pensar que este tipo de historiografia substituiria de todo o antigo fazer histórico tradicional. Ao invés das fontes habituais que eram sempre tomadas para uma abordagem qualitativa, a chamada História Serial introduziu nas proximidades dos meados do século XX uma perspectiva inteiramente nova: tratava-se de constituir “séries” de fontes e de abordá-las de acordo com técnicas igualmente inéditas.


Se pensarmos em termos de constituição de um recorte de pesquisa pelo historiador, podemos dizer que, com a História Serial, recorta-se o objeto não propriamente em função de uma determinada realidade histórico-social concernente a uma delimitação espaço-temporal preestabelecida, mas mais precisamente em função de uma determinada série de fontes ou de materiais que é constituída precisamente pelo historiador. Ainda que se possa pensar em outras possibilidades de utilização historiográfica da serialização, este foi o modelo que começou a emergir a partir de meados do século XX, tendo como ponto de partida os trabalhos pioneiros de Ernst Labrousse sobre "Os preços no Antigo Regime", e como marco mais significativo a célebre obra de Pierre Chaunu sobre 'Sevilha e o Atlântico' (1954).

É importante distinguir a História Serial de uma outra modalidade que, por vezes, apresenta-sa como sua co-irmã, mas que se refere a outro critério: a História Quantitativa. História Serial e História Quantitativa podem aparecer conectadas, mas é possível perfeitamente pensar trabalhos de História Serial sem a preocupação quantitativa propriamente dita, e, de todo modo, é preciso distinguir bem uma modalidade da outra. Para entendermos bem esta diferença, vamos, antes de mais nada, refletir sobre o que é exatamente uma "série" na historiografia.

Na chamada ‘História Serial’ o historiador estabelece uma “série”, e é esta série que particularmente o interessa. François Furet, em seu 'Atelier do Historiador' (1982), define a História Serial em termos da constituição do fato histórico em séries homogêneas e comparáveis. Dito de outra forma, trata-se de “serializar” o fato histórico, para medi-lo em sua repetição e variação através de um período que muitas vezes é o da longa duração. Na verdade a duração longa, ou pelo menos a média duração (relativa às conjunturas), foram as que predominaram nos primeiros trabalhos de História Serial – muito voltados, nesta primeira época, para a História Econômica e para a História Demográfica, ao mesmo tempo que combinados com a perspectiva de uma História Quantitativa. Todavia, pode-se proceder a uma serialização relacionada também a um período relativamente curto, desde que o conjunto documental estabelecido seja suficientemente denso.

De certo modo, as possibilidades de tratamento serial permitiram uma sensível ampliação de alternativas em termos de recorte historiográfico, uma vez que as séries singulares a serem construídas por cada historiador já não se enquadrariam nas periodizações tradicionalmente preestabelecidas. Criar uma série é, em certa medida, recriar o tempo – assumi-lo como ‘tempo construído’, e não como ‘tempo vivido’ a ser reconstituído.

Por outro lado, optar pelo caminho serial pressupõe necessariamente escolher ou construir um problema condutor muito específico – problema este que é fator fundamental na constituição da própria série. A História Serial veio assim diretamente ao encontro de uma História Problema, como as demais modalidades historiográficas que passaram a predominar na historiografia profissional do século XX.

Com relação a este aspecto, e em se tratando de uma série documental homogênea, não teria sentido examinar esta série evasivamente, de modo meramente impressionista. A História Serial constitui-se necessariamente de uma leitura da realidade social através da série que foi construída pelo historiador em função de um certo problema (sendoque muitas vezes a própria série chega a se confundir com o problema,com ele entremear-se na prática historiográfica). Não se trata, de todo modo, de optar inicialmente pelo estudo de uma determinada sociedade para só depois buscar as fontes que permitirão este estudo ou o acesso a esta sociedade, como poderia se dar em outros caminhos historiográficos. Pode-se dizer que, nesta modalidade historiográfica, o problema e as fontes chegam juntos: fazem parte um do outro. O que o historiador serial estuda é precisamente a série: este é basicamente o seu recorte e a essência de seu objeto. E pode-se compreender como uma “série” tanto os fatos repetitivos que permitem ser avaliados comparativamente, como uma determinada documentação homogênea.

No primeiro sentido, François Furet fala em termos de uma serialização de fatos históricos que trazem entre si um padrão de repetitividade (fatos históricos que serão obviamente de um novo tipo, não mais se reduzindo aos acontecimentos políticos). No segundo sentido, ao examinar os novos paradigmas historiográficos surgidos no século XX, Michel Foucault assinala que “a história serial define seu objeto a partir de um conjunto de documentos dos quais ela dispõe” . Isto abre naturalmente um grande leque de novas possibilidades:


“Assim, talvez pela primeira vez, há a possibilidade de analisar como objeto um conjunto de materiais que foram depositados no decorrer dos tempos sob a forma de signos, de traços, de instituições, de práticas, de obras, etc ...” (FURET, 1982]


Portanto, em que pese que fontes administrativas, estatísticas, testamentárias, policiais e cartoriais se prestem admiravelmente a um trabalho de História Serial, é possível também constituir em série documentação literária, iconográfica, ou mesmo práticas perceptíveis a partir de fontes orais. É mesmo possível constituir séries às quais não se pretenda necessariamente aplicar um tratamento quantitativo propriamente dito, mas sim uma abordagem mais tendente ao qualitativo – interessada ainda em perceber tendências, repetições, variações, padrões recorrentes e em discutir o documento integrado em uma série mais ampla, mas sem tomar como abordagem principal a referência numérica.

Uma das obras de Gilberto Freyre, por exemplo, constitui como série documental para o estudo da Escravidão no Nordeste os anúncios presentes em jornais da época – onde os grandes senhores anunciavam a fuga de escravos fornecendo descrições detalhadas dos mesmos, inclusive sinais corporais que falavam eloqüentemente das práticas inerentes à dominação escravocrata . Não é propriamente o Escravo que é o seu objeto, mas “o Escravo nos anúncios de jornal”, como o próprio título indica. Ou seja, busca-se recuperar um discurso sobre o Escravo a partir de uma série que coincide com os periódicos examinados pelo autor; procura-se dentro desta série perceber uma recorrência de padrões de representação, mas também as singularidades e variações, e por trás destes padrões de representação os padrões de relações sociais que os geraram.

Conforme logo veremos, a série pode se prestar à percepção do quantitativo, mas também pode se prestarào entendimento das mudanças qualitativas. Mas antes de adentrarmos este ponto, podemos desde já reconhecer que, com o advento da História Serial em meados do século XX, os caminhos historiográficos marcados pela ultrapassagem do documento isolado passaram a se integrar definitivamente ao repertório de possibilidades disponíveis para o historiador. O recorte documental mostra-se aqui como uma outra possibilidade para o historiador delimitar o seu tema. Definido este recorte, surgirá então uma delimitação temporal específica, que será válida para aquele recorte problemático e documental na sua singularidade, e não para outros. Dito de outra forma, em alguns destes casos é uma documentação que impõe um recorte de tempo, a partir dos seus próprios limites e das aberturas metodológicas que ela oferece.

Será bastante buscar uma exemplificação final com o próprio estudo pioneiro de Pierre Chaunu. O recorte de sua tese, estabelecido entre 1504 e 1650, é criado a partir de uma primeira data em que a documentação da ‘Casa de Contratação de Sevilha’ lhe permite uma construção estatística, e extingue-se no marco de uma segunda data quando a documentação já não permite uma avaliação quantitativa dos fatos (precisamente uma data relativa ao momento em que o comércio atlântico deixa de trazer a marca do predomínio espanhol e em que, consequentemente, a documentação de Sevilha se dilui como definidora de uma totalidade atlântica). O recorte documental problematizado, enfim, organizou o tempo do historiador.


...


Nesta parte final, gostaria de discorrer sobre uma confusão que constantemente assalta o historiador em formação quando este é apresentado às diversas modalidades historiográficas. Refiro-me precisamente à diferença entre História Serial e História Quantitativa. Embora sejam comuns as já mencionadas possibilidades de que as duas abordagens se superponham para formar uma História Serial Quantitativa, as duas modalidades também podem andar separadas, e existem diferenças a serem notadas entre estes dois campos históricos.

A História Serial refere-se ao uso de um determinado tipo de fontes (homogêneas, do mesmo tipo, referentes a um período coerente com o problema a ser examinado), e que permitam uma determinada forma de tratamento (a serialização de dados, a identificação de elementos ou ocorrências comuns que permitam a identificação de um padrão e, na contrapartida, uma atenção às diferenças, às vezes graduais, para se medir variações). Já a História Quantitativa deve ser definida através de um outro critério: o seu campo de observação. O que a História Quantitativa pretende observar da realidade está atravessado pela noção do “número”, da “quantidade”, de valores a serem medidos. As técnicas a serem utilizadas pela abordagem quantitativa serão estatísticas, ou basea-das na síntese de dados através de gráficos diversos e de curvas de variação a serem observadas de acordo com eixos de abscissas e coordenadas. Algumas análises quantitativas mais sofisticadas poderão utilizar logarítimos, recursos matemáticos mais avançados como integrais e derivadas. O computador será neste caso de uma ajuda inestimável. Com relação ao tipo de fontes para a efetivação de uma pesquisa com base na História Quantitativa, estas serão fatalmente “fontes seriais”, e aqui está o nó do esclarecimento.

A quantificação pressupõe a serialização (se não de fontes, pelo menos de dados). O inverso é que não ocorre. Posso trabalhar com séries de fontes sem estar necessariamente interessado no número. Estarei interessado em verificar recorrências, mas não necessariamente quantidades. Posso, por exemplo, verificar padrões iconográficos. A quantidade de documentos em que se repete um determinado padrão, ou a sua recorrência com variações mínimas, isto pode até ser contabilizado - mas como um recurso paralelo. E não necessariamente. A chave para definir uma prática como História Serial é portanto a busca de padrões recorrentes e variações ao longo de uma série de fontes ou materiais homogêneos. Mas não necessariamente a quantidade, ou pelo menos isto não é o principal. Assim, para dar um último exemplo, posso serializar notícias de jornais durante um período mais ou menos longo para verificar a repetição de determinado tipo de anúncios, ou a sua gradual variação ao longo do tempo, ou mesmo as variações bruscas que serão indicativas de algum acontecimento que produziu a transformação. A “série” é o que canaliza a atenção do historiador na modalidade da História Serial; o “número” ou a medida é o que canaliza a atenção do historiador no caso da História Quantitativa. Se as duas coisas constituem o ponto nodal da abordahem historiográfica empregada, temos aí uma conexão entre a História Quantitativa e a História Serial.

Um alerta final é sempre útil quando se apresenta, aos historiadores em formação, as modalidades que trabalham com o quantitativo. Ao empreender uma História Quantitativa, o historiador deve tomar o cuidado (isto é, se quiser tomar este cuidado) para não realizar uma história meramente descritiva de informações numéricas, sejam estas relativas à população ou à economia. Se a sua História Quantitativa se resumir a uma exposição de quantidades, terminará por se constituir meramente em uma História Descritiva, não-problematizada. Convenhamos que este tipo de história é a contrapartida, para o caso da História Narrativa, daquela tendência historiográfica do século XIX que ficou conhecida como História Factual (ou História Eventual) devido à intensa crítica que os historiadores da Escola dos Annales, e outros, fizeram a esta historiografia não-problematizada (que também era chamada pejorativamente de “historiografia positivista”, embora não se referindo necessariamente ao Positivismo enquanto corrente sociológica).

Reconheçamos que narrar simplesmente os fatos, de maneira não-problematizada, como se o que importasse na História fosse a mera descrição dos eventos ou “dos fatos que aconteceram” (como chegou a propor Ranke em uma frase célebre) será tão passível de críticas, de acordo com os critérios de uma História Problema, como descrever simplesmente os dados demográficos ou econômicos de uma determinada sociedade. Em uma caso teremos a História Narrativa Factual (da qual está muito longe a moderna História Narrativa problematizada que começou a aparecer a partir da década de 1980). Em outro caso teremos a História Quantitativa meramente descritiva, que levanta dados e mais dados mas não estabelece problemas, não utiliza estes dados minuciosamente levantados para produzir uma reflexão problematizada sobre a sociedade em um momento ou processo histórico.

Como o tratamento estatístico foi uma novidade na historiografia da primeira metade do século XX, nesta época se fez muita história quantitativa meramente descritiva que de fato soou como uma grande novidade (e, em certo sentido, era mesmo). Mas levantar os fatos cientificamente também era uma novidade para a historiografia do século XIX. Depois de décadas acumulando estes fatos (hoje se sabe que selecionar fatos e conectá-los deste ou daquele jeito é já parte de uma interpretação ou construção historiográfica) começou-se a se perguntar o que fazer com estes fatos. A História Problema rejeitou a História Narrativa meramente factual. Hoje a História Problema deve rejeitar a História Quantitativa meramente descritiva que alguns ainda insistem em fazer. O historiador de hoje deve lançar mão dos levantamentos quantitativos (empreendidos por ele mesmo ou por um outro) para formular problemas. Isto é, se ele quiser acompanhar este grande fluxo da História Problema que atravessou o século XX e chegou ao século XXI.

Posto isto, há lugar para todas estas especialidades combinadas às várias tendências. Para a história quantitativa serial problematizada. Para a história serial não essencialmente quantitativa (e também problematizada). Haverá até mesmo um lugar para a história quantitativa descritiva, pois sempre será útil para um 'historiador problematizador' se beneficiar desta exaustiva pesquisa que fizeram os historiadores quantitativos descritivos, para a partir dela formular questões e propor hipóteses. Da mesma forma, os historiadores problematizadores agradecem aqueles exaustivos levantamentos de fatos que foram empreendidos pelos historiadores factuais, porque eles podem ser utilizados como materiais (como pontos de partida) para uma reflexão problematizada sobre sociedades historicamente localizadas. Qualquer informação pode ter lá a sua valia em algum momento. O importante é que o historiador profissional compreenda bem que tipo de história estará fazendo: levantando fatos e dados, ou construindo uma história problematizada a partir destes fatos e dados?


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[A primeira parte do presente texto foi extraído do livro "O Projeto de Pesquisa em História" (Editora Vozes, 2011, 7a edição). A segunda parte foi extraída do livro "O Campo da História" (Editora Vozes, 2011, 8a edição)]


[BARROS, José D'Assunção. O Projeto de Pesquisa em História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 7a edição. p.47-51]

[BARROS, José D'Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 8a edição. http://ning.it/fmKC17]

Leia também o texto sobre Fontes Seriais no blog "A Escrita da História" (http://ning.it/i9JsYu).


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Referências:

BARROS, José D'Assunção. O Projeto de Pesquisa em História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 7a edição.
BARROS, José D'Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 8a edição.
CHAUNU, Pierre e CHAUNU, Huguette. Séville et l’Atlantique. Paris: S.E.V.P.E.N., 1955-1956.
FREYRE, Gilberto. O Escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. São Paulo: Brasiliana, 1988.
FURET, François. A Oficina da História. Lisboa: Gradiva, 1991. v. I.

sábado, 22 de janeiro de 2011

História Local e História Regional

No último texto deste blog, falávamos da Geo-História como um novo campo histórico que, surgido na primeira metade do século XX em interdisciplinaridade com a Geografia, clarificava mais do que nunca a importância do conceito de "espaço" para a História. A obra "O Mediterrâneo" (1949), de Fernando Braudel, foi um marco para esta tomada de consciência do historiador em relação ao Espaço.

Se Fernando Braudel trabalhou com o ‘grande espaço’, as gerações seguintes de historiadores trouxeram também a possibilidade de uma nova tendência que abordaria o ‘pequeno espaço’. Esta nova tendência, que se fortalece nos anos 1950, ficou conhecida na França como ‘História Local’. Também aqui a contribuição da Geografia derivada de Vidal de La Blache destaca-se com particular nitidez, ajudando a configurar um conceito de Região que logo passaria a ser utilizado pelos Historiadores para o estudo de micro-espaços ou espaços localizados, em muitos sentidos dotados de uma homogeneidade bem maior do que os macro-espaços que haviam sido examinados por Braudel. Do macro-espaço que abriga civilizações, a historiografia moderna apresentava agora a possibilidade de examinar os micro-espaços que abrigavam populações localizadas, fragmentos de uma comunidade nacional mais ampla. A História Local nascia, aliás, como possibilidade de confirmar ou corrigir as grandes formulações que haviam sido propostas ao nível das histórias nacionais. A História Local – ou História Regional, como passaria a ser chamada com um sentido um pouco mais específico – surgia precisamente como a possibilidade de oferecer uma iluminação em detalhe de grandes questões econômicas, políticas, sociais e culturais que até então haviam sido examinadas no âmbito das nações ocidentais.


O modelo de compreensão do Espaço proposto pela escola de Vidal La Blache funcionou adequadamente para diversos estudos associados a esta historiografia européia dos anos 1950 que lidava com aquilo que Pierre Goubert – um dos grandes nomes da ‘História Local’ – chamava de “unidade provincial comum”, e que ele associava a unidades “tal como um country inglês, um contado italiano, uma Land alemã, um pays ou bailiwick franceses” (GOUBERT, 1992, p.45). Nestes casos e em outros, o espaço escolhido pelo historiador coincidia de modo geral com uma unidade administrativa e muitas vezes com uma unidade bastante homogênea do ponto de vista geográfico ou da perspectiva de práticas agrícolas. Também se tratava habitualmente de zonas mais ou menos estáveis – bem ao contrário do que ocorria em países como os da América Latina durante o período colonial, onde devemos considerar a ocorrência muito mais freqüente de “fronteiras móveis”. A espacialidade tipicamente européia em certos recortes temporais – que não coincide com a de outras áreas do planeta e para todos os períodos históricos – permitiu que fosse aproveitado por aqueles historiadores que começavam a desenvolver estudos regionais, cobrindo todo o Antigo Regime, um modelo onde o espaço podia ser investigado e apresentado previamente pelo historiador, como uma espécie de moldura onde os acontecimentos, práticas e processos sociais se desenrolavam. Freqüentemente, e até os anos 1960, as monografias derivadas da chamada Escola dos Annales apresentavam previamente a Introdução Geográfica, e depois vinha a História, a organização social, as ações do homem. A possibilidade de este modelo funcionar, naturalmente, dependia muito do objeto que se tinha em vista, para além dos padrões da espacialidade européia nos períodos considerados.

A crítica que depois se fez a este modelo no qual o espaço era como que dado previamente – tal como aparecia nas propostas derivadas da escola de Vidal de La Blache – é que na verdade estava sendo adotado um conceito não-operacional de Região. As Regiões vinham definidas previamente, como que estabelecidas de uma vez por todas, e bastava o historiador ou o geógrafo escolher a sua para depois trabalhar nela com suas problematizações específicas. Freqüentemente – quando a região coincidia com um recorte político-administrativo que permanecera sem maiores alterações desde a época estudada até o tempo presente – isto representava uma certa comodidade para o historiador, que podia buscar as suas fontes exclusivamente em arquivos concentrados nas regiões assim definidas.

Em seu célebre artigo sobre “A História Local”, Pierre Goubert chama atenção para o fato de que a emergência da história local dos anos 1950 havia sido motivada precisamente por uma combinação entre o interesse em estudar uma maior amplitude social (e não mais apenas os indivíduos ilustres, como nas crônicas regionais do século XIX) e alguns métodos que permitiriam este estudo para regiões mais localizadas – mais particularmente as abordagens seriais e estatísticas, capazes de trabalhar com dados referentes a toda uma população de maneira massiva. Ao trabalhar em suas pequenas localidades, os historiadores poderiam desta maneira fixar sua atenção “em uma região geográfica particular, cujos registros estivessem bem reunidos e pudessem ser analisados por um homem sozinho” (GOUBERT, 1992, p.49). A coincidência entre a região examinada e uma unidade administrativa tradicional como a paróquia rural ou o pequeno município, podemos acrescentar, permitia por vezes que o historiador resolvesse todas as suas carências de fontes em um único arquivo, ali mesmo encontrando e constituindo a série a partir da qual poderia extrair os dados sobre a população e a comunidade examinada.

Com o progressivo surgimento dos novos problemas e objetos que a expansão dos domínios historiográficos passou a oferecer cada vez mais no decurso do século XX, o modelo de região derivado da escola geográfica de La Blache começou a ser questionado precisamente porque deixava encoberta a questão essencial de que qualquer delimitação espacial é sempre uma delimitação arbitrária, e também de que as relações entre o homem e o espaço modificam-se com o tempo, tornando inúteis (ou não-operacionais) delimitações regionais que poderiam funcionar para um período mas não para outro. Uma paisagem rural facilmente pode se modificar a partir da ação do homem, o que mostra a inoperância de considerar regiões geográficas fixas – e isto se mostra especialmente relevante para os estudos da América Latina no período colonial, mais ainda do que para os estudos relativos à Europa do mesmo período . De igual maneira, um território (voltaremos a este conceito) não existe senão com relação ao âmbito de análises que se tem em vista, aos aspectos da vida humana que estão sendo examinados (se do âmbito econômico, político, cultural ou mental, por exemplo).

Atrelar o espaço ou o território historiográfico que o historiador constitui a uma pré-estabelecida região administrativa, geográfica (no sentido proposto por La Blache), ou de qualquer outro tipo, implicava em deixar escapar uma série de objetos historiográficos que não se ajustam a estes limites. A mesma comodidade arquivística que pode favorecer ou viabilizar um trabalho mais artesanal do historiador – capacitando-o para dar conta sozinho de seu objeto sem abandonar o seu pequeno recinto documental – também pode limitar e empobrecer as escolhas historiográficas. Uma determinada prática cultural, conforme veremos oportunamente, pode gerar um território específico que nada tenha a ver com o recorte administrativo de uma paróquia ou município, misturando pedaços de unidades paroquiais distintas ou vazando municípios. Do mesmo modo, uma realidade econômica ou de qualquer outro tipo não coincide necessariamente com a região geográfica no sentido tradicional.

A crítica aos modelos de recorte regional-administrativo, ou de recortes geográficos à velha maneira de Vidal La Blache, não surgiram apenas das novas buscas historiográficas, mas também de desenvolvimentos que se deram no próprio seio da Geografia Humana. Tal ressalta Ciro Flamarion Cardoso em um ensaio bastante importante sobre a História Agrária, à altura dos anos 1970 o conceito de “região” derivado da escola de Vidal de la Blache começou a ser radicalmente criticado por autores como Yves Lacoste (1976) – que sustentavam que a realidade impõe o reconhecimento de “especialidades diferenciais, de dimensões e significados variados, cujos limites se recortam e se superpõem, de tal maneira que, estando num ponto qualquer, não estaremos dentro de um, e sim de diversos conjuntos espaciais definidos de diferentes maneiras” (CARDOSO, 1979, p.47).

A idéia de tratar sob o ponto de vista das “espacialidades superpostas” a materialidade física sobre a qual se movimenta o homem em sociedade, incluindo sistemas diversificados que vão da rede de transportes à rede de conexões comerciais ou ao estabelecimento de padrões culturais, aproxima-se muito mais da realidade vivida do que o encerramento do espaço em regiões definidas de uma vez para sempre, e associadas apenas aos recortes administrativos e geográficos que habitualmente aparecem nos mapas. A realidade, em qualquer época, é necessariamente complexa, mesmo que esta complexidade não possa ser integralmente captada por nenhuma das ciências humanas, por mais que estas desenvolvam novos métodos para tentar apreender a realidade a partir de perspectivas cada vez mais enriquecidas.
 
[Leia o artigo no qual se baseou este texto sobre a "História Local" em: http://ning.it/gjjs2S]

[BARROS, José D'Assunção. "História, Região e Espacialidade" in Revista Brasileira de História Regional. Ponta Grossa: UEPG, 2005. vol.10, n°1, p.95-129]

Geo-História

A Geo-História é o campo histórico que estuda a vida humana no seu relacionamento com o ambiente natural e com o espaço concebido geograficamente. É com Fernando Braudel (1949) que este campo começa a se destacar, passando a se definir e a se encaixar nos estudos históricos de “longa duração” . Por outro lado, a Geo-História pode se dedicar mais especificamente ao estudo de um aspecto transversal no decurso de uma duração mais longa, como fez Le Roy Ladurie ao realizar uma "História do Clima" (1967) . Nestes casos, ocorre muito freqüentemente que o geo-historiador tome para fontes, além da documentação mais tradicional, os próprios vestígios da Natureza (Ladurie esteve atento aos “anéis” que se formam nos caules das árvores de vida longa, considerando que, de acordo com conclusões já estabelecidas pelos botânicos, um anel estreito significa um ano de seca, e um anel largo um ano beneficiado por chuvas abundantes). Conforme se vê, a Geo-História deve dialogar necessariamente não só com a Geografia, como também com outras ciências da natureza (a exemplo da Botânica ou da Ecologia).

Nas décadas recentes começaram a surgir outras modalidades historiográficas próximas à Geo-História,como por exemplo a História Ecológica, que é já uma demanda das últimas décadas, assombradas pelos desastres naturais, pelas devastações florestais, pela ameaça de extinção de inúmeras espécies animais, pelo aumento da poluição e pelo crescimento desordenado nas cidades. A História Ecológica é de certo modo uma Geo-História acrescida de uma preocupação ecológica fundamental

Vamos retornar à primeira metade do século XX para entender a Geo-História a partir de um novo impulso de interdisciplnaridade que, por aquela época, acabava de surgir entre os historiadores franceses ligados à escola dos Annales e alguns geógrafos, principalmente os ligados à escola do geógrafo francês Vidal de la Blache. Partindo dos primeiros empreendimentos de Lucien Febvre, que  publicara uma obra intitulada "A Terra e a Evolução Humana" (1922), a Geo-História começa a tomar forma como uma nova possibilidade de campo histórico, até se delinear mais claramente com uma das mais emblemáticas obras que foram constituídas na conexão deste campo histórico com outros, tais como a História Econômica e a História Política. Referimo-nos à célebre obra "O Mediterrâneo", de Fernando Braudel.

Lucien Febvre já havia oferecido à comunidade historiográfica, com "A Terra e a Evolução Humana" (1922), as primeiras experiências voltadas para a aplicação das concepções espaciais derivadas da escola geográfica de Vidal de La Blache - muito mais voltadas para a idéia de um "possibilismo geográfico" do que para o "determinismo historiográfico" que se via,então, em outras correntes geográficas.  Mas seria Fernando Braudel o primeiro a aplicar estas novas noções a um objeto historiográfico mais específico e de maior magnitude.

"O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico no tempo de Felipe II" (1945) – obra que se celebrizou por entremear para um mesmo objeto o exame de três temporalidades distintas (a longa, a média e a curta duração), cada qual com seu ritmo próprio – traz precisamente no primeiro volume, dedicado ao estudo de uma longa duração na qual tudo se transforma muito lentamente, um modelo que marcaria toda uma geração de historiadores: a idéia de estabelecer como ponto de partida da análise historiográfica o espaço geográfico.


Nesta obra de Braudel, como em Vidal de La Blache, o “meio” e o “espaço” são noções perfeitamente equivalentes. Oscilando entre a idéia de que o meio determina o homem, e a de que os homens instalam-se no meio natural transformando-o de modo a convertê-lo na principal base de sua vida social, Braudel termina por associar intimamente a ‘civilização’ e a ‘macro-espacialidade’. Em Mediterrâneo ele afirma que, “uma civilização é, na base, um espaço trabalhado, organizado pelos homens e pela história” (BRAUDEL, 1966, p.107), e em A Civilização Material do Capitalismo (1960) ele reitera esta relação sob a forma de uma indagação: “o que é uma civilização senão a antiga instalação de uma certa humanidade em um certo espaço?” (BRAUDEL, 1967, p.95). Esta relação íntima entre a sociedade e o meio geográfico (no sentido lablachiano) estaria precisamente na base da formação de uma nova modalidade historiográfica: a Geo-História.

A Geo-História introduz a geografia como grade de leitura para a história (DOSSE, 1994, p.136), e ao trazer o espaço para primeiro plano e não mais tratá-lo como mero teatro de operações – e sim como o próprio sujeito da História – possibilita o exame da longa duração, esta história quase imóvel que se desenrola sobre uma estrutura onde os elementos climáticos, geológicos, vegetais e animais encontram-se em um ambiente de equilíbrio dentro do qual se instala o homem. Rigorosamente falando, não é tanto com a idéia de um “determinismo geográfico” que Braudel trabalha em O Mediterrâneo, e sim com a idéia de um ‘possibilismo’ inspirado precisamente na geografia de Vidal de La Blache. Afora isto, o empreendimento a que o historiador francês se propõe nesta obra paradigmática é o de realizar uma ‘espacialização da temporalidade’, e mais tarde ele aprimorará também uma ‘espacialização da economia’, chegando ao conceito de “economias-mundo” que já se encontra perfeitamente elaborado e sustentado em exemplos históricos com A Civilização Material do Capitalismo.

O objeto do primeiro volume de O Mediterrâneo – que representa a grande originalidade desta obra dividida em três partes que se referem a cada uma das três temporalidades que marcam os ritmos da história – é a relação entre o Homem e o Espaço. É esta relação que ele pretende recuperar através de “uma história quase imóvel ... uma história lenta a desenvolver-se e a transformar-se, feita muito freqüentemente de retornos insistentes, de ciclos sem fim recomeçados” (BRAUDEL, 1969, p.11). A interação entre o Homem e o Espaço, as suas simbioses e estranhamentos, as limitações de um diante do outro, tudo isto não constitui propriamente a moldura do quadro que Braudel pretende examinar, mas o próprio quadro em si mesmo. Eis aqui o primeiro ato deste monumental ensaio historiográfico, e é sobre esta história quase-imóvel de longa duração – a temporalidade espacializada onde o tempo infiltra-se no solo a ponto de quase desaparecer – que se erguerá o segundo ato, a ‘média duração’ que rege os “destinos coletivos e movimentos de conjunto”, trazendo à tona uma história das estruturas que abrange desde os sistemas econômicos até as hegemonias políticas, os estados e sociedades. Trata-se de uma história de ritmos seculares, e não mais milenares, e depois dela surgirá o último andar – a ‘curta duração’ que rege a história dos acontecimentos, formada por “perturbações superficiais, espumas de ondas que a maré da história carrega em suas fortes espáduas” (BRAUDEL, 1969, p.21).

É fácil perceber como o sujeito da história, nas duas obras monumentais de Braudel, transfere-se do homem propriamente dito para realidades que lhe são muito superiores: o ‘Espaço’, no Mediterrâneo; e a ‘Vida Material’, na Civilização Material do Capitalismo. São estes grandes sujeitos históricos que abrem o campo de possibilismos para as subseqüentes histórias dos ‘movimentos coletivos’ e dos ‘indivíduos’. Tal como observa Peter Burke em uma sintética mas lúcida análise de O Mediterrâneo, um dos objetivos centrais de Braudel nesta obra é mostrar que tanto a história dos acontecimentos como a história das tendências gerais não podem ser compreendidas sem as características geográficas que as informam e que, de resto, tem a sua própria história longa:



“O capítulo sobre as montanhas, por exemplo, discute a cultura e a sociedade das regiões montanhosas, o conservadorismo dos montanheses, as barreiras socioculturais que separam os homens da montanha dos homens da planície, e a necessidade de muitos jovens montanheses emigrarem, tornando-se mercenários” (BURKE, 1991, p.50)



'O Mediterrâneo e Felipe II', enfim, é a insuperável obra prima em que Braudel pretendeu demonstrar que o tempo avança com diferenças velocidades, em uma espécie de polifonia na qual a parte mais grave coincide com a história quase imóvel do Espaço, e onde temporalidade e espacialidade praticamente se convertem uma à outra. Paradoxalmente, apesar de ter sido o primeiro a propor uma “história quase imóvel” como um dos níveis de análise, outra grande contribuição de O Mediterrâneo foi a de mostrar que tudo está sujeito a mudanças, ainda que lentas, o que inclui o próprio Espaço. De fato, a leitura de O Mediterrâneo nos mostra que o espaço definido por este grande Mar era muito maior no século XVI do que nos dias de hoje, pelo simples fato de que o transporte e a comunicação eram muito mais demorados naquele período . Com isto, percebe-se que a espacialidade dilata-se ou comprime-se no tempo conforme consideremos um período ou outro nos quais se contraponham diferentes possibilidades dos homens movimentarem-se no espaço. Mais uma vez, homem, espaço e tempo aparecem como três fatores indissociáveis.

Se o Espaço está sujeito aos ditames do Tempo, por outro lado a Temporalidade também está sujeita aos ditames do Espaço e do meio geográfico. Apenas para dar um exemplo assinalado por François Dosse, o mesmo Mediterrâneo de Braudel também nos mostra um mundo dicotomicamente dividido em duas estações: enquanto o verão autoriza o tempo da guerra, o inverno anuncia a estação da trégua – uma vez que “o mar revolto não permite mais aos grandes comboios militares se encaminharem de um ponto ao outro do espaço mediterrânico: é, então, o tempo dos boatos insensatos, mas também o tempo das negociações e das resoluções pacíficas” (DOSSE, 1994, p.140). Desta maneira o Clima (um aspecto físico do meio geográfico) reconfigura o Espaço, e este redefine o ritmo de tempos em que se desenrolam as ações humanas. Espaço, Tempo e Homem.

A obra de Fernando Braudel também nos permite iniciar outra reflexão que retomaremos mais adiante, e que se refere à consideração de uma diferença fundamental entre “duração” e “recorte de tempo”. Braudel ousou estudar o ‘grande espaço’ no ‘tempo longo’. Quando falamos em “tempo longo” referimo-nos a uma “duração” – ou antes: a um determinado ‘ritmo de duração’. O tempo longo é o tempo que se alonga, o tempo que parece passar mais lentamente. Não devemos confundir “longa duração” com “recorte extenso”. O recorte de Braudel em O Mediterrâneo – pelo menos o recorte deste trecho da História de que ele se vale para orquestrar polifonicamente as três durações distintas – é o reinado de Felipe II. Braudel não estudou nesta obra um ‘recorte temporal estendido’. Ele estudou um recorte tradicional, que cabe em uma ou duas gerações e que coincide com a duração de um reinado, mas examinando através deste recorte a passagem do tempo em três ritmos diferentes. Uma outra coisa seria examinar um determinado espaço – grande ou pequeno – em um recorte extenso ou estendido. Dito de outra forma, o ritmo de tempo que o historiador sintoniza em sua análise de uma determinada realidade histórico-social nada tem a ver com o “recorte temporal historiográfico” escolhido pelo historiador.

Com relação ao seu recorte espacial, Fernando Braudel havia considerado que o Mediterrâneo possuía sob certos aspectos uma unidade que transcendia as unidades nacionais que se agrupavam em torno do grande “mar interior”, e que ultrapassava a polarização política entre os dois grandes impérios da época: o Espanhol e o Turco. Por outro lado, o historiador francês precisou lidar com a ‘unidade na diversidade’, e descreve dezenas de regiões autônomas cujos ritmos convergem para um ritmo supralocal. O mundo mediterrânico que ele descreve é constituído por um grande complexo de ambientes – mares, ilhas, montanhas, planície e desertos – e que se vê partilhado em uma pluralidade de regiões a terem sua heterogeneidade decifrada antes de ser possível propor a homogeneidade maior ditada pelo tipo de vida sugerido pelo grande Mar. Este foi o desafio enfrentado por Braudel.

[Leia o artigo completo, do qual este texto foi adaptado, e compreenda melhor a interdisciplinaridade entre História e Geografia, acessando: http://ning.it/eVVbrn]

[BARROS, José D'Assunção. "Geografia e História: uma interdisciplinaridade mediada pelo espaço" in Geografia - revista da Universidade Estadual de Londrina. vol.19, n°3, 2010. p.67-84]

Sobre a Geo-História, leia também o livro "O Campo da História" (Petrópolis: editora Vozes, 2011, 8a edição).

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Obras Citadas:

BARROS, José D'Assunção. O Campo da História. Petrópolis: editora Vozes, 2011, 8a edição.
BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na época de Felipe II. São Paulo: Martins Fonte, 1989.
DOSSE, François. O Tempo de Marc Bloch e Lucien Febvre. A história em Migalhas. Bauru: EDUSC, 2003. p. 91-146.
FEBVRE, Lucien. A terra e a evolução humana: introdução geográfica à história. Lisboa: Cosmos, 1991
GOUBERT, Pierre. “História Local” in História & Perspectivas, Uberlândia, 6-45-47, Jan/Jun 1992.
LA BLACHE, Paul Vidal de. Princípios de Geografia Humana. Lisboa: Cosmo,s/d.
LADURIE, Emmanuel Le Roy. Histoire du climat depuis l’an 1000. Paris: Flammarion, 1967.