Com a História da Cultura Material temos o campo histórico que corresponde à interação do Homem com a materialidade que mais diretamente envolve a sua existência: aquela que o próprio Homem produz em sua vida social, o que implica desde a construção do seu habitat até os objetos duráveis e não-duráveis do seu cotidiano.
Se considerarmos a tripartição de critérios proposta em nossa teoria dos Campos Históricos, definiremos a História da Cultura Material como uma ‘dimensão’ historiográfica. De fato, quando se põe a avaliar uma sociedade do ponto de vista da Cultura Material, o que o historiador está trazendo a primeiro plano é uma dimensão tão importante quanto a Política, a Cultura, as Mentalidades, o Imaginário, ou as várias outras dimensões que dão origem a campos históricos desta natureza. A História da Cultura Material é deste modo uma modalidade historiográfica definida por critérios similares àqueles que presidem a geração de modalidades como a História Política ou a História da Cultura. Se nestas modalidades o historiador traz a primeiro plano, respectivamente, as relações de poder (história política) e a cultura em sentido amplo (a história cultural), a História da Cultura Material traz para primeiro plano a própria vida material dos homens que vivem em sociedade, incluindo os objetos e materiais que constituem a base desta cultura material gerida e organizada socialmente.
A partir desta definição, as relações da História da Cultura Material com outras modalidades historiográficas se frutificam, uma vez que podemos entendê-la como o campo histórico que estuda fundamentalmente os objetos materiais em sua interação com os aspectos mais concretos da vida humana, desdobrando-se por domínios históricos que vão do estudo dos utensílios ao estudo da alimentação, do vestuário, da moradia e das condições materiais do trabalho humano. A noção fundamental que atravessa este campo, bem entendido, é a da “matéria” (ou do ‘objeto material’, que pode ser tanto o de tipo durável, como no caso dos monumentos e dos utensílios, como do tipo perecível, como no caso dos alimentos). Contudo, é importante ressaltar que este campo deve examinar não o objeto material tomado em si mesmo, mas sim os seus usos, as suas apropriações sociais, as técnicas envolvidas na sua manipulação, a sua importância econômica e a sua necessidade social e cultural. Afinal, a noção de “cultura” também não deixa de atravessar este campo.
É assim que o historiador da cultura material não se mostra atento apenas aos tecidos e objetos da indumentária, mas também aos modos de vestir, às oscilações da moda, às suas variações conforme os grupos sociais, às demarcações políticas que por vezes se colam a uma determinada roupa que os indivíduos de certas minorias podem ser obrigados a utilizar em sociedades que aproximam os critérios da “diferença” e da “desigualdade”. Com relação aos alimentos, o historiador buscará não um exaustivo inventário dos vários gêneros alimentícios, mas uma compreensão dos seus modos de consumo, dos regimes alimentares que predominam nos diversificados grupos sociais e profissionais, das expectativas simbólicas de cada alimento; das formas de armazenamento e intercâmbio dos gêneros alimentícios. Da variedade de habitações, procurará extrair uma compreensão da vida familiar, das relações entre público e privado, da segregação social que pode ser estabelecida a partir de determinadas configurações de espaço, dos regimes imaginários que podem estar associados a certos padrões habitacionais, da correlação entre os vários tipos de bens imóveis e os grupos sociais a que pertencem os seus possuidores.
Ao perceber a materialidade de uma cidade – os seus monumentos, os seus espaços de circulação, os seus espaços de trancafiamento, os seus compartimentos lícitos e ilícitos – o historiador estará buscando perceber os modos de vida da sociedade que a habita, as expectativas dos seus habitantes. Ao examinar uma cidade murada, como aquelas que eram tão típicas da Idade Média e do princípio da Modernidade, tentará compreender o que significa este tipo de “viver murado”, que medos aparecem a reboque desta espécie de enclausuramento urbano ou, na contrapartida, que sensações de segurança contribuirão para o alívio do habitante murado frente aos riscos de invasão externa. A cidade aberta, com outros tipos de problemas, inspirará reflexões distintas, e darão dar a conhecer outros tipos de sociedades. O historiador da cultura material que trabalha com a História Urbana tem muito a perceber através dos objetos citadinos.
Móveis, objetos decorativos, ferramentas, máquinas, matérias primas que darão luz a objetos manufaturados, veículos que os transportarão ao longo de grandes avenidas e estradas, com destino a determinados grupos de consumidores que por estes bens terão de pagar em moeda sonante ... tudo pode ser objeto de uma História da Cultura Material. Pode-se perceber que, além da noção de “materialidade”, uma outra noção marcante que muito freqüentemente atravessa este campo histórico é a de “cotidiano”. O historiador da cultura material estará freqüentemente estudando os domínios da vida cotidiana, da vida privada, embora estes domínios também possam ser partilhados por historiadores voltados predominantemente para outras dimensões ou enfoques, como é também o caso da História das Mentalidades.
O estudo atento dos objetos da cultura material faz com que esta especificidade da história esteja intimamente associada à Arqueologia, mas do ponto de vista da categorização das modalidades historiográficas esta última designação refere-se preferencialmente a uma ‘abordagem’ relacionada ao levantamento e à decifração de fontes da cultura material, e não tanto à ‘dimensão’ de vida social que é trazida por estas fontes. Por outro lado, vale lembrar que, se tradicionalmente a Arqueologia vinha sendo tratada como ciência distinta da História, gerando uma dimensão corporativa própria (a dos arqueólogos), é precisamente a entrada em cena de uma História da Cultura Material (assim definida conceitualmente) o que atua mais fortemente no sentido de incorporar a comunidade arqueológica na comunidade historiadora. Rigorosamente, todo bom arqueólogo é também um historiador da Cultura Material, não se limitando a coletar resíduos de civilizações. De qualquer modo, para considerar a tábua de critérios que estamos utilizando para visualizar as partições internas ao campo historiográfico, pode-se dizer que, ao se mostrar relacionada a um ‘modo’ de desvendar vestígios materiais e de conectá-los para reconstruir a História, a Arqueologia vincula-se mais coerentemente a uma segunda ordem de critérios que se definem pelas ‘abordagens’ utilizadas pelo historiador. Neste sentido, para um historiador, a Arqueologia remete sobretudo aos ‘métodos arqueológicos’ que eventualmente serão empregados para levantar fontes e dados empíricos no decorrer da pesquisa – fontes e dados sobre os quais o historiador fará incidir depois um determinado enfoque que pode ou não ser o da História da Cultura Material. Mas, de qualquer maneira, a História da Cultura Material e a Arqueologia freqüentemente andam juntas.
Também a História da Cultura Material pode atuar na conexão com campos historiográficos definidos por outras dimensões ou enfoques. Assim, a “matéria” e a “imagem” podem ser examinadas nas suas interrelações, e conseqüentemente um historiador pode associar os campos da História da Cultura Material e da História do Imaginário. Segundo Gaston Bachelard (1943), “a imaginação de um movimento reclama a imaginação de uma matéria”. A partir de um enfoque que não deixa de ser similar, os objetos e artefatos são encarados como complexos de tendências ou “redes de gestos” por Leroi-Gourhan – que de algum modo não deixa de ser simultaneamente um antropólogo da cultura material e do imaginário que se dedicou mais particularmente às culturas paleolíticas. O vaso, por exemplo, seria uma materialização da tendência geral de conter fluidos . Relacionando gestos, imagens e objetos materiais, Leroi-Gourhan analisa determinados objetos, como a “casca”, visando estabelecer curiosas interconexões. “As tendências para “conter”, “flutuar”, “cobrir” particularizadas pelas técnicas do tratamento da casca dão o vaso, a canoa ou o telhado. Se este vaso de casca é cozido, implica imediatamente uma outra clivagem possível das tendências: coser para conter dá o vaso de casca, coser para vestir dá a veste de peles, coser para abrigar dá a casa de pranchas cozidas”.
Estas divagações podem parecer demasiado abstratas à primeira vista, mas devemos aprender com elas. As relações entre os objetos da cultura material e o imaginário podem ser exploradas criativamente pelos historiadores de um ou outro destes campos. Independente de ser um símbolo bélico, a ‘espada’ também se abre imagisticamente para o gesto do ‘ordenamento social’. Ela estende-se para o gesto que corta, que descrimina, que separa, que compartimenta — que ordena o social, enfim. Neste sentido, o símbolo incorpora com a sugestão do ‘ordenamento social’ mais esta outra função representativa, para além do enfrentamento do inimigo. A espada torna-se um símbolo polissêmico, representação da força mas também, da justiça.
As interrelações mais imediatas da História da Cultura Material afirmar-se-ão provavelmente com a História Econômica, que, conforme veremos mais adiante, terá como um dos seus três setores básicos de preocupações o estudo da esfera da Produção. Neste caso, os objetos materiais privilegiados para estudo serão as ferramentas, as máquinas, a matéria prima – ou, para utilizar a terminologia marxista, os ‘meios’ e ‘instrumentos de produção’. Sem contar as ‘técnicas’, que também se tornam objeto de interesse da História da Cultura Material (usos que se incorporam a determinados objetos, ou que até mesmo os definem). Na esfera econômica da Circulação, teremos como objetos da cultura material importantes as “moedas”, pontos focais para estudos de cultura material, de história econômica e novamente do imaginário (se o historiador ocupar-se também do estudo da simbologia de suas efígies). Quanto aos objetos ligados ao Consumo, são infinitos.
Um exemplo de incorporação à análise historiográfica de enfoques relacionados à História da Cultura Material foi concretizado por Fernando Braudel, em um dos volumes de 'Civilização Material, Economia e Capitalismo' (1967) . Por outro lado, Marc Bloch pode ser considerado um precursor, levando-se em conta que teria empreendido uma modalidade de História da Cultura Material ao analisar a ‘paisagem rural’ na medievalidade francesa.
Enfim, o tratamento historiográfico da Cultura Material pode ser identificado através de um longo desenvolvimento, no decurso deste último século, que vai desde estas obras pioneiras até as obras mais recentes, como a História das Coisas Banais de Daniel Roche – obra que examina para a sociedade européia do século XVII ao XIX diversificados aspectos como a alimentação, o vestuário e aparência, o fornecimento de água, luz e aquecimento, os móveis e utensílios e, de uma maneira geral, a produção de objetos e o seu consumo. Eis aí, portanto, uma história do ocidente moderno através dos objetos e dos seus usos, inscrevendo-os em uma teia de relações humanas que deve ser captada para que a História da Cultura Material não se transforme em um mero inventário descritivo de bens diversos e de suas formas de consumo.
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BARROS, José D'Assunção. “História da Cultura Material: notas sobre um campo histórico em suas relações intradisciplinares e interdisciplinares” in Patrimoniuss. março/2009. http://ning.it/gIFy65
Muito interessante! e útil!!!
ResponderExcluirOlá, esse link para o texto não dá certo.
ResponderExcluirLeia a continuação deste texto em: http://ning.it/gIFy65