Entre as várias modalidades da História que se desenvolveram no decurso do século XX, algumas têm primado pela riqueza de possibilidades que abrem aos historiadores que as praticam, por vezes com perspectivas antagônicas entre si. A História Cultural – campo historiográfico que se torna mais preciso e evidente a partir das últimas décadas do século XX, mas que tem claros antecedentes desde o início do século – é entre estas particularmente rica no sentido de abrigar no seu seio diferentes possibilidades de tratamento. Nosso objetivo aqui será o de elaborar um pequeno panorama das principais tendências que têm se projetado no âmbito da História Cultural.
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Para introduzir um universo comum a todas as tendências de aqui falaremos, consideraremos que a História Cultural é aquele campo do saber historiográfico atravessado pela noção de “cultura” (da mesma maneira que a História Política é o campo atravessado pela noção de “poder”, ou que a História Demográfica funda-se essencialmente sobre o conceito de “população”, e assim por diante). Cultura, contudo, é um conceito extremamente polissêmico, notando-se ainda que o século XX trouxe-lhe novas redefinições e abordagens em relação ao que se pensava no século XIX como um âmbito cultural digno de ser investigado pelos historiadores.
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Orientando-se em geral por uma noção muito restrita de “cultura”, os historiadores do século XIX costumavam passar ao largo das manifestações culturais de todos os tipos que aparecem através da cultura popular, além de também ignorarem que qualquer objeto material produzido pelo homem faz também parte da cultura – da cultura material, mais especificamente. Além disto, negligenciava-se o fato de que toda a vida cotidiana está inquestionavelmente mergulhada no mundo da cultura. Ao existir, qualquer indivíduo já está automaticamente produzindo cultura, sem que para isto seja preciso ser um artista, um intelectual, ou um artesão. A própria linguagem, e as práticas discursivas que constituem a substância da vida social, embasam esta noção mais ampla de Cultura. “Comunicar” é produzir Cultura, e de saída isto já implica na duplicidade reconhecida entre Cultura Oral e Cultura Escrita (sem falar que o ser humano também se comunica através dos gestos, do corpo, e da sua maneira de estar no mundo social, isto é, do seu ‘modo de vida’).
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Apenas para exemplificar com uma situação significativa, tomemos um “livro”, este objeto cultural reconhecido por todos os que até hoje se debruçaram sobre os problemas culturais. Ao escrever um livro, o seu autor está incorporando o papel de um produtor cultural. Isto todos reconhecem. O que foi acrescentado pelas mais modernas teorias da comunicação é que, ao ler este livro, um leitor comum também está produzindo cultura. A leitura, enfim, é prática criadora – tão importante quanto o gesto da escritura do livro. Pode-se dizer, ainda, que cada leitor recria o texto original de uma nova maneira – isto de acordo com os seus âmbitos de “competência textual” e com as suas especificidades (inclusive a sua capacidade de comparar o texto com outros que leu, e que podem não ter sido previstos ou sequer conhecidos pelo autor do texto original que está se prestando à leitura). Desta forma, uma prática cultural não é constituída apenas no momento da produção de um texto ou de qualquer outro objeto cultural, ela também se constitui no momento da recepção. Este exemplo, aqui o evocamos com o fito de destacar a complexidade que envolve qualquer prática cultural (e elas são de número indefinido).
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Desde já, para aproveitar o exemplo acima discutido, poderemos evocar uma delimitação já moderna de História Cultural elaborada por Georges Duby . Para o historiador francês, este campo historiográfico estudaria dentro de um contexto social os “mecanismos de produção dos objetos culturais” (aqui entendidos como quaisquer objetos culturais, e não apenas as obras-primas oficialmente reconhecidas). O exemplo acima proposto autoriza-nos a acrescentar algo. A História Cultural enfoca não apenas os mecanismos de produção dos objetos culturais, como também os seus mecanismos de recepção (e já vimos que, de um modo ou de outro, a recepção é também uma forma de produção). Estabelecido isto, retomemos a comparação entre os atuais tratamentos historiográficos da Cultura e aqueles que eram tão típicos do século XIX.
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Ao ignorar a inevitável complexidade da noção básica que a fundamentava, a História da Cultura tal como era praticada nos tempos antigos era uma história elitizada, tanto nos sujeitos como nos objetos estudados. A noção de “cultura” que a perpassava era uma noção demasiado restrita, que os avanços da reflexão antropológica vieram desautorizar. Não que as produções culturais que as várias épocas reconhecem como “alta cultura”, ou que a produção artística que está hoje sacramentada pela prática museológica tenham perdido interesse para os historiadores. Ao contrário, estuda-se Arte e Literatura do ponto de vista historiográfico muito mais do que nos séculos anteriores ao século XX. Apenas que a estes interesses mais restritos acrescentou-se uma infinidade de outros. Tal parece ter sido a principal contribuição do último século para a História da Cultura. Para além disto, passou-se a avaliar a Cultura também como processo comunicativo, e não como a totalidade dos bens culturais produzidos pelo homem. Este aspecto, para o qual confluíram as contribuições advindas das teorias semióticas da cultura, também representou um passo decisivo.
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As noções que se acoplam mais habitualmente à de “cultura” para constituir um universo de abrangência da História Cultural são as de “linguagem” (ou comunicação), “representações”, e de “práticas” (práticas culturais, realizadas por seres humanos em relação uns com os outros e na sua relação com o mundo, o que em última instância inclui tanto as ‘práticas discursivas’ como as ‘práticas não-discursivas’). Para além disto, a tendência nas ciências humanas de hoje é muito mais a de falar em uma ‘pluralidade de culturas’ do que em uma única Cultura tomada de forma generalizada. Em nosso caso, como estamos empregando a História Cultural como um dos enfoques possíveis para o historiador que se depara com uma realidade social a ser decifrada, utilizaremos em algumas ocasiões a expressão empregada no singular como ordenadora desta dimensão complexa da vida humana. Trata-se no entanto de uma dimensão múltipla, plural, complexa, e que pode gerar diversas aproximações diferenciadas.
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Os objetos da História Cultural, face à noção complexa de cultura que hoje predomina nos meios da historiografia profissional, são inúmeros. A começar pelos objetos que já faziam parte dos antigos estudos historiográficos da Cultura, continuaremos mencionando o âmbito das Artes, da Literatura e da Ciência – campo já de si multi-diversificado, no qual podem ser observados desde as imagens que o homem produz de si mesmo, da sociedade em que vive e do mundo que o cerca, até as condições sociais de produção e circulação dos objetos de arte e literatura. Fora estes objetos culturais já de há muito reconhecidos, e que de resto sintonizam com a “cultura letrada”, incluiremos todos os objetos da ‘cultura material’ e os materiais (concretos ou não) oriundos da “cultura popular” produzida ao nível da vida cotidiana através de atores de diferentes especificidades sociais.
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De igual maneira, uma nova História Cultural interessar-se-á pelos sujeitos produtores e receptores de cultura – o que abarca tanto a função social dos ‘intelectuais’ de todos os tipos (no sentido amplo, conforme veremos adiante), até o público receptor, o leitor comum, ou as massas capturadas modernamente pela chamada “indústria cultural” (esta que, aliás, também pode ser relacionada como uma agência produtora e difusora de cultura). Agências de produção e difusão cultural também se encontram no âmbito institucional: os Sistemas Educativos, a Imprensa, os meios de comunicação, as organizações socioculturais e religiosas.
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Para além dos sujeitos e agências que produzem a cultura, estudam-se os meios através dos quais esta se produz e se transmite: as práticas e os processos. Por fim, a ‘matéria-prima’ cultural propriamente dita (os padrões que estão por trás dos objetos culturais produzidos): as “visões de mundo”, os sistemas de valores, os sistemas normativos que constrangem os indivíduos, os ‘modos de vida’ relacionados aos vários grupos sociais, as concepções relativas a estes vários grupos sociais, as idéias disseminadas através de correntes e movimentos de diversos tipos. Com um investimento mais próximo à História das Mentalidades, podem ser estudados ainda os modos de pensar e de sentir tomados coletivamente.
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Estes inúmeros objetos da História Cultural – distribuídos ou partilhados entre os cinco eixos fundamentais acima citados (objetos culturais, sujeitos, práticas, processos e padrões) – têm constituído um foco especial de interesses da parte de vários historiadores do século XX. Nos parágrafos que se seguem, procuraremos discutir algumas das várias contribuições basilares que atuaram conjuntamente para a constituição deste campo no decurso do século.
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Leia acontinuação deste artigo em:
http://ning.it/gUSXnu
Referência: BARROS, José D'Assunção. “História Cultural – um panorama teórico e historiográfico” in Textos de História (Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UNB). dezembro de 2003, volume 11, nْ.1/2. p.145-171
O texto também pode ser encontrado, com algumas adaptações, em um dos capítulos do livro O Campo da História (Petrópolis: Editora Vozes, 2010, 7a edição). Leia também: BARROS, José D'Assunção. "A História Cultural e a Contribuição de Roger Chartier. Diálogos, UEM, 2005. http://ning.it/eqx6jU
excelente o texto...
ResponderExcluirexcelente o texto...
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