No último texto deste blog, falávamos da Geo-História como um novo campo histórico que, surgido na primeira metade do século XX em interdisciplinaridade com a Geografia, clarificava mais do que nunca a importância do conceito de "espaço" para a História. A obra "O Mediterrâneo" (1949), de Fernando Braudel, foi um marco para esta tomada de consciência do historiador em relação ao Espaço.
Se Fernando Braudel trabalhou com o ‘grande espaço’, as gerações seguintes de historiadores trouxeram também a possibilidade de uma nova tendência que abordaria o ‘pequeno espaço’. Esta nova tendência, que se fortalece nos anos 1950, ficou conhecida na França como ‘História Local’. Também aqui a contribuição da Geografia derivada de Vidal de La Blache destaca-se com particular nitidez, ajudando a configurar um conceito de Região que logo passaria a ser utilizado pelos Historiadores para o estudo de micro-espaços ou espaços localizados, em muitos sentidos dotados de uma homogeneidade bem maior do que os macro-espaços que haviam sido examinados por Braudel. Do macro-espaço que abriga civilizações, a historiografia moderna apresentava agora a possibilidade de examinar os micro-espaços que abrigavam populações localizadas, fragmentos de uma comunidade nacional mais ampla. A História Local nascia, aliás, como possibilidade de confirmar ou corrigir as grandes formulações que haviam sido propostas ao nível das histórias nacionais. A História Local – ou História Regional, como passaria a ser chamada com um sentido um pouco mais específico – surgia precisamente como a possibilidade de oferecer uma iluminação em detalhe de grandes questões econômicas, políticas, sociais e culturais que até então haviam sido examinadas no âmbito das nações ocidentais.
O modelo de compreensão do Espaço proposto pela escola de Vidal La Blache funcionou adequadamente para diversos estudos associados a esta historiografia européia dos anos 1950 que lidava com aquilo que Pierre Goubert – um dos grandes nomes da ‘História Local’ – chamava de “unidade provincial comum”, e que ele associava a unidades “tal como um country inglês, um contado italiano, uma Land alemã, um pays ou bailiwick franceses” (GOUBERT, 1992, p.45). Nestes casos e em outros, o espaço escolhido pelo historiador coincidia de modo geral com uma unidade administrativa e muitas vezes com uma unidade bastante homogênea do ponto de vista geográfico ou da perspectiva de práticas agrícolas. Também se tratava habitualmente de zonas mais ou menos estáveis – bem ao contrário do que ocorria em países como os da América Latina durante o período colonial, onde devemos considerar a ocorrência muito mais freqüente de “fronteiras móveis”. A espacialidade tipicamente européia em certos recortes temporais – que não coincide com a de outras áreas do planeta e para todos os períodos históricos – permitiu que fosse aproveitado por aqueles historiadores que começavam a desenvolver estudos regionais, cobrindo todo o Antigo Regime, um modelo onde o espaço podia ser investigado e apresentado previamente pelo historiador, como uma espécie de moldura onde os acontecimentos, práticas e processos sociais se desenrolavam. Freqüentemente, e até os anos 1960, as monografias derivadas da chamada Escola dos Annales apresentavam previamente a Introdução Geográfica, e depois vinha a História, a organização social, as ações do homem. A possibilidade de este modelo funcionar, naturalmente, dependia muito do objeto que se tinha em vista, para além dos padrões da espacialidade européia nos períodos considerados.
A crítica que depois se fez a este modelo no qual o espaço era como que dado previamente – tal como aparecia nas propostas derivadas da escola de Vidal de La Blache – é que na verdade estava sendo adotado um conceito não-operacional de Região. As Regiões vinham definidas previamente, como que estabelecidas de uma vez por todas, e bastava o historiador ou o geógrafo escolher a sua para depois trabalhar nela com suas problematizações específicas. Freqüentemente – quando a região coincidia com um recorte político-administrativo que permanecera sem maiores alterações desde a época estudada até o tempo presente – isto representava uma certa comodidade para o historiador, que podia buscar as suas fontes exclusivamente em arquivos concentrados nas regiões assim definidas.
Em seu célebre artigo sobre “A História Local”, Pierre Goubert chama atenção para o fato de que a emergência da história local dos anos 1950 havia sido motivada precisamente por uma combinação entre o interesse em estudar uma maior amplitude social (e não mais apenas os indivíduos ilustres, como nas crônicas regionais do século XIX) e alguns métodos que permitiriam este estudo para regiões mais localizadas – mais particularmente as abordagens seriais e estatísticas, capazes de trabalhar com dados referentes a toda uma população de maneira massiva. Ao trabalhar em suas pequenas localidades, os historiadores poderiam desta maneira fixar sua atenção “em uma região geográfica particular, cujos registros estivessem bem reunidos e pudessem ser analisados por um homem sozinho” (GOUBERT, 1992, p.49). A coincidência entre a região examinada e uma unidade administrativa tradicional como a paróquia rural ou o pequeno município, podemos acrescentar, permitia por vezes que o historiador resolvesse todas as suas carências de fontes em um único arquivo, ali mesmo encontrando e constituindo a série a partir da qual poderia extrair os dados sobre a população e a comunidade examinada.
Com o progressivo surgimento dos novos problemas e objetos que a expansão dos domínios historiográficos passou a oferecer cada vez mais no decurso do século XX, o modelo de região derivado da escola geográfica de La Blache começou a ser questionado precisamente porque deixava encoberta a questão essencial de que qualquer delimitação espacial é sempre uma delimitação arbitrária, e também de que as relações entre o homem e o espaço modificam-se com o tempo, tornando inúteis (ou não-operacionais) delimitações regionais que poderiam funcionar para um período mas não para outro. Uma paisagem rural facilmente pode se modificar a partir da ação do homem, o que mostra a inoperância de considerar regiões geográficas fixas – e isto se mostra especialmente relevante para os estudos da América Latina no período colonial, mais ainda do que para os estudos relativos à Europa do mesmo período . De igual maneira, um território (voltaremos a este conceito) não existe senão com relação ao âmbito de análises que se tem em vista, aos aspectos da vida humana que estão sendo examinados (se do âmbito econômico, político, cultural ou mental, por exemplo).
Atrelar o espaço ou o território historiográfico que o historiador constitui a uma pré-estabelecida região administrativa, geográfica (no sentido proposto por La Blache), ou de qualquer outro tipo, implicava em deixar escapar uma série de objetos historiográficos que não se ajustam a estes limites. A mesma comodidade arquivística que pode favorecer ou viabilizar um trabalho mais artesanal do historiador – capacitando-o para dar conta sozinho de seu objeto sem abandonar o seu pequeno recinto documental – também pode limitar e empobrecer as escolhas historiográficas. Uma determinada prática cultural, conforme veremos oportunamente, pode gerar um território específico que nada tenha a ver com o recorte administrativo de uma paróquia ou município, misturando pedaços de unidades paroquiais distintas ou vazando municípios. Do mesmo modo, uma realidade econômica ou de qualquer outro tipo não coincide necessariamente com a região geográfica no sentido tradicional.
A crítica aos modelos de recorte regional-administrativo, ou de recortes geográficos à velha maneira de Vidal La Blache, não surgiram apenas das novas buscas historiográficas, mas também de desenvolvimentos que se deram no próprio seio da Geografia Humana. Tal ressalta Ciro Flamarion Cardoso em um ensaio bastante importante sobre a História Agrária, à altura dos anos 1970 o conceito de “região” derivado da escola de Vidal de la Blache começou a ser radicalmente criticado por autores como Yves Lacoste (1976) – que sustentavam que a realidade impõe o reconhecimento de “especialidades diferenciais, de dimensões e significados variados, cujos limites se recortam e se superpõem, de tal maneira que, estando num ponto qualquer, não estaremos dentro de um, e sim de diversos conjuntos espaciais definidos de diferentes maneiras” (CARDOSO, 1979, p.47).
A idéia de tratar sob o ponto de vista das “espacialidades superpostas” a materialidade física sobre a qual se movimenta o homem em sociedade, incluindo sistemas diversificados que vão da rede de transportes à rede de conexões comerciais ou ao estabelecimento de padrões culturais, aproxima-se muito mais da realidade vivida do que o encerramento do espaço em regiões definidas de uma vez para sempre, e associadas apenas aos recortes administrativos e geográficos que habitualmente aparecem nos mapas. A realidade, em qualquer época, é necessariamente complexa, mesmo que esta complexidade não possa ser integralmente captada por nenhuma das ciências humanas, por mais que estas desenvolvam novos métodos para tentar apreender a realidade a partir de perspectivas cada vez mais enriquecidas.
[Leia o artigo no qual se baseou este texto sobre a "História Local" em: http://ning.it/gjjs2S]
[BARROS, José D'Assunção. "História, Região e Espacialidade" in Revista Brasileira de História Regional. Ponta Grossa: UEPG, 2005. vol.10, n°1, p.95-129]
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