A História Comparada é um campo histórico que se refere tanto a um ‘modo específico de observar a história’ como à escolha de um ‘campo de observação’ específico – mais propriamente falando, uma espécie de “duplo campo de observação”, ou mesmo um “múltiplo campo de observação”. Situa-se portanto entre aqueles campos históricos que são definidos por uma “abordagem” específica – por um modo próprio de fazer a história, de observar os fatos ou de analisar as fontes. Resumindo em duas indagações que a tornam possível, a História Comparada pergunta simultaneamente: “o que observar?” e “como observar?”. E dá respostas efetivamente originais a estas duas indagações.
Para compreender de que maneira a História Comparada responde a estas duas questões fundamentais, será imprescindível mergulharmos na compreensão deste gesto fundador – a “comparação” – que dá o próprio nome e uma substância específica a esta modalidade historiográfica. Antes de mais nada, consideraremos que “comparar” é uma maneira bastante específica de propor e pensar as questões. Freqüentemente nos defrontamos com esta forma intuitiva de abordagem quando nos deparamos na vida cotidiana com situações novas, e neste caso a comparação nos ajuda a precisamente a compreender a partir de bases mais conhecidas e seguras aquilo que nos é apresentado como novo, seja identificando semelhanças ou diferenças. Comparar é um gesto espontâneo, uma prática que o homem exercita nas suas atividades mais corriqueiras, mas que surge com especial intensidade e necessidade quando ele tem diante de si uma situação nova ou uma realidade estranha.
A comparação neste momento – diante do desafio ou da necessidade – impõe-se como método. Trata-se de iluminar um objeto ou situação a partir de outro, mais conhecido, de modo que o espírito que aprofunda esta prática comparativa dispõe-se a fazer analogias, a identificar semelhanças e diferenças entre duas realidades, a perceber variações de um mesmo modelo. Por vezes, será possível ainda a prática da “iluminação recíproca”, um pouco mais sofisticada, que se dispõe a confrontar dois objetos ou realidades ainda não conhecidos de modo a que os traços fundamentais de um ponham em relevo os aspectos do outro, dando a perceber as ausências de elementos em um e outro, as variações de intensidade relativas à mútua presença de algum elemento em comum. Será por fim possível, se o que se observa são dois objetos ou realidades dinâmicas em transformação, verificar como os elementos identificados através da comparação vão variando em alguma direção mais específica – de modo que se possa identificar um certo padrão de transformações no decurso de um tempo – e, mais ainda, se temos duas realidades contíguas, como uma influencia a outra, e como as duas a partir da relação recíproca terminam por se transformar mutuamente.
Já nestes níveis de análise, a comparação não mais se mostra um mero gesto intuitivo, de domínio comum e cotidiano, mas sim um método próprio que oferece àquele que a utiliza determinadas potencialidades e certos limites, forçando-o antes de mais nada a definir o que pode e o que não pode ser comparado, a refletir sobre as condições em que esta comparação pode se estabelecer, a formular estratégias e modos específicos para a observação mais sistematizada das diferenças e variações, acrescentando-se ainda a necessária reflexão de que alguns tipos de objetos permitem este ou aquele modo de observação e de análise, e não outro. Seria oportuno, aqui, indagar pela natureza do momento em que o gesto comparativo passa da prática intuitiva e espontânea para outro patamar, onde se erige em método, em escolha tornada consciente e acompanhada de autocrítica, de procedimentos, de sistematização.
Evocaremos neste momento a contribuição bastante específica de Marc Bloch para a História Comparada, que nas mãos do historiador francês torna-se antes de tudo uma “História Comparada Problema”. Para além desta introdução fundamental da História Comparada no ambiente da “História-Problema” proposto pelos Annales, Bloch teve grande importância como sistematizador do método comparativo de maneira geral, seja a partir de suas considerações teóricas – expressas em dois textos importantes[1] – seja a partir de suas realizações práticas. Será imprescindível compreender, neste caso, o seu esforço de sistematização – este que hoje pode beneficiar os historiadores comparatistas de diversificadas vertentes.
Para melhor clarificar os conceitos fundacionais relacionados à questão da História Comparada, de acordo com a via que se consolidaria a partir de Marc Bloch, convém antes de mais nada distinguir a “História Comparada “propriamente dita – vista aqui como um campo intradisciplinar específico – do “comparativismo histórico”, em sentido mais amplo.
De um modo ou de outro, o historiador sempre utilizou a comparação como parte de seus recursos para compreender as sociedades no tempo, embora não necessariamente como um método sistematizado. De todo modo, poderemos lembrar aqui a formulação de Paul Veyne, que retoma um pressuposto de Giambatista Vico e considera que “toda história é história comparada” (VEYNE, 1983)[2]. Sobre esta questão, diremos que – mesmo quando nos referimos ao comparativismo como método – é evidente que poderemos sempre atribuir um sentido mais específico ao “comparativismo histórico” como abordagem possível, e não como algo que estaria implícito a todo o “fazer histórico” consoante a fórmula enunciada por Veyne. “Comparar”, “elencar semelhanças e diferenças” e “estabelecer analogias” são naturalmente ações tão familiares ao historiador como contextualizar os acontecimentos ou dialogar com as suas fontes. Mas para falarmos em um “método comparativo” é preciso, tal como já pontuamos no início deste ensaio, ultrapassar aquele uso mais próximo da intuição e da utilização cotidiana da comparação para alcançar um nível de observação e análise mais profundo e sistematizado, para o qual “o que se pode comparar” e o “como se compara” tornam-se questões relevantes, fundadoras de um gesto metodológico.
Posto isto, já para definir a “História Comparada” como um campo específico, consideraremos ainda que será preciso se ter em vista uma modalidade que não apenas lança mão do “comparativismo histórico” como método – por exemplo, como método aplicável à análise de determinados tipos de fontes ou séries de acontecimentos – e sim como uma modalidade que estabelece campos de trabalho ou de observação muito bem delineados. A História Comparada, antes do mais, seria uma modalidade historiográfica que atua de forma simultânea e integradora sobre campos de observação diferenciados e bem delimitados – campos, a bem dizer, que ela mesma constitui e delineia. Para o caso daquele tipo de História Comparada que coloca em confronto duas realidades nacionais diferenciadas, estes campos podem ter até suas bases já admitidas por antecipação, é verdade, mas sempre é bom se ter em vista que os universos a serem comparados nas ciências humanas são sempre de algum modo construções do próprio historiador ou do cientista social – não são necessariamente conjuntos já dados ou passíveis de serem admitidos previamente, frisaremos aqui.
Esta bem fundamentada perspectiva de comparativismo histórico tem como um de seus marcos teóricos mais importantes o célebre VI° Congresso Internacional de Ciências Históricas de Oslo (1928), no qual Marc Bloch desenvolveria uma conferência – logo transformada no já mencionado artigo – que objetivava refletir precisamente sobre as potencialidades do estudo comparado na História (BLOCH, 1928). Na verdade, estas considerações teóricas de Bloch sobre o comparativismo histórico podem ser consideradas uma decorrência de sua primeira realização prática neste sentido: a obra Os Reis Taumaturgos (BLOCH, 1993), que havia sido publicada alguns anos antes, em 1924. Será oportuno retomarmos, neste momento, as reflexões de Marc Bloch sobre o comparativismo histórico, pronunciadas no Congresso de Oslo.
Em primeiro lugar, Marc Bloch procura fixar os requisitos fundamentais sobre os quais poderia ser constituída uma História Comparada que realmente fizesse sentido. Sua conclusão é a de que dois aspectos irredutíveis seriam imprescindíveis: de um lado uma certa similaridade dos fatos, de outro, certas dessemelhanças nos ambientes em que esta similaridade ocorria. A semelhança e a diferença, conforme se vê, estabelecem aqui um jogo perfeitamente dinâmico e vivo: sem analogias, e sem diferenças, não e possível se falar em uma autêntica História Comparada. De igual maneira, Bloch visualizou dois grandes caminhos que poderiam ser percorridos pelos historiadores dispostos a lançar mão do comparativismo na História. Seria possível comparar sociedades distantes no tempo e no espaço, ou, ao contrário, sociedades com certa contigüidade espacial e temporal. No caso da comparação de sociedades distanciadas no espaço e no tempo tinha-se uma situação singular: a ausência de interinfluências entre as duas sociedades examinadas. Neste caso, o trabalho consistiria basicamente na busca de analogias – situação para a qual poderemos exemplificar com a possibilidade de estabelecer uma comparação entre o que se poderia chamar de “feudalismo europeu” e o que poderia ser denominado “feudalismo japonês”, duas realidades afastadas no espaço, em uma época em que não poderiam transmitir influências uma à outra[3]. Os riscos típicos deste caminho representado pela possibilidade de comparação entre sociedades não-contíguas é naturalmente o da falsa analogia ou do “anacronismo” – transplante de um modelo válido para uma época ou espacialidade social para um outro contexto histórico onde o modelo não tenha sentido real, correspondendo apenas a uma ficção estabelecida pelo próprio historiador.
Quando nos referimos a “sociedades contíguas”, teremos em vista que o próprio conceito de contigüidade muda de uma época em relação à outra. Na época da mundialização, e mais ainda, no período da globalização, duas sociedades afastadas espacialmente tem possibilidades imediatas de inter-influência, não correspondendo à situação estanque que se tinha nos períodos em que a comunicação era menos imediata. De igual maneira, cabe salientar que a comparação não precisa relacionar necessariamente realidades nacionais distintas, podendo corresponder também a ambientes sociais distintos, que se pretenda comparar.
Posto isso, consideraremos o segundo grande caminho apontado por Marc Bloch para uso da comparação histórica – na verdade aquele que ele mesmo preconizava como preferível. Trata-se aqui de comparar sociedades próximas no tempo e no espaço, que exerçam influências recíprocas. A vantagem de comparar sociedades contíguas está precisamente em abrir a percepção do historiador para as influências mútuas, o que também o coloca em posição favorável para questionar falsas causas locais e esclarecer, por iluminação recíproca, as verdadeiras causas, interrelações ou motivações internas de um fenômeno e as causas ou fatores externos. Será importante ainda salientar que, para empreender este caminho da História Comparada que atua sob realidades históricas contíguas – por exemplo, duas realidades nacionais sincrônicas – o historiador deve estar apto a identificar não apenas as semelhanças como também as diferenças. O exemplo mais concreto que Marc Bloch pôde oferecer desta abordagem, já aplicada a uma investigação histórica específica, foi a sua primorosa obra de 1924: Os Reis Taumaturgos (1993). Ao mesmo tempo, o artigo teórico elaborado em 1928 pelo historiador francês tornou-se uma espécie de pedra fundamental da História Comparada, no qual já veremos claramente os caminhos privilegiados por Marc Bloch no interior desta modalidade historiográfica em formação:
“Estudar paralelamente sociedades vizinhas e contemporâneas, constantemente influenciadas umas pelas outras, sujeitas em seu desenvolvimento, devido a sua proximidade e a sua sincronização, à ação das mesmas grandes causas, e remontando, ao menos parcialmente, a uma origem comum” (BLOCH, 1928: 19)
O que se havia realizado em Os Reis Taumaturgos senão este modelo? Teremos aqui duas sociedades medievais vizinhas – a francesa e a inglesa – ambas com um imaginário em comum e com repertórios de representações similares, que serão investigados pelo historiador à luz de um mesmo problema comum que os atravessa: o da crença popular no poder taumatúrgico de seus reis. As duas sociedades se inter-influenciam; as duas cortes que se beneficiam das representações taumatúrgicas – a capetíngia na França e a plantageneta na Inglaterra – rivalizam uma com a outra, movimentam-se, mesmo, no contexto desta iluminação e rivalidade recíprocas. O material histórico adequa-se, portanto, ao caminho proposto pelo modelo preconizado por Bloch: duas sociedades sincrônicas que guardam entre si relações interativas, e que juntas oferecem uma visão clara de um problema comum que as atravessa. Sem uma ou outra, no mero âmbito de uma história nacional, não poderia ser compreendida a questão da apropriação política do imaginário taumatúrgico que se desenvolve nas monarquias européias, das origens em comum deste mesmo imaginário, das intertextualidades que se estabelecem, do confronto do modelo taumatúrgico com outros modelos de realeza. Assim, História Comparada das realezas francesa e inglesa através do imaginário taumatúrgico contribui, de algum modo, para compreender a Europa de maneira mais plena.
Desde a época de Bloch, e sobretudo a partir da segunda metade do século XX, muitas foram as contribuições enquadráveis no âmbito da História Comparada. Pode-se dizer que o enriquecimento da História Comparada enquanto campo que já começa a se definir em meados do século dá-se em dois níveis: por um lado com o crescimento de diálogos interdisciplinares da História com outros campos do saber, como a Antropologia, a Sociologia, a Geografia e a Economia; por outro lado, através de uma maior variedade de escalas de observação a partir das quais se organizam as diversas perspectivas de exercício do comparativismo histórico. A variação na escala de comparação – o âmbito civilizacional, nacional, regional, local, intra-urbano, e assim por diante – desemboca, por fim, na possibilidade de comparar grupos étnicos ou identitários, práticas culturais mais específicas, realidades literárias, havendo mesmo os trabalhos de historiografia comparada, como um campo a mais de interesses.
Leia o início e a continuação deste artigo em: http://ning.it/igoCy1
[BARROS, José D'Assunção. "História Comparada - da contribuição de Marc Bloch à constituição de um moderno campodisciplinar". História Social (Revista da Unicamp). vol.13, 2007, 7-21. http://ning.it/igoCy1
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Notas:
[1] (1) BLOCH, 1928 : p.15-50. (2) BLOCH, 1930.
[2] Referindo-se a um outro âmbito de questões, também Witold Kula ressalta a idéia de que nenhum trabalho científico, por limitado e monográfico que seja, pode dispensar totalmente o método comparativo, o que inclui a História (KULA, 1973: 571).
[3] Um exemplo de História Comparada envolvendo sociedades distanciadas, agora relativamente às suas temporalidades, está na pesquisa de Robert Darnton sobre a Censura, a qual o historiador americano examina em três espaço-tempos bem diversificados: A França do Antigo Regime, a Índia britânica do século XIX, e a Alemanha Oriental do século XX (cf. “Entrevista com Robert Darnton” in PALLARES-BURKE, 2000).
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