A Micro-História é um campo relativamente recente na Historiografia, e ainda hoje gera muitas po-lêmicas com relação às suas possibilidades de definição. Uma questão complicadora é que a Micro-História começou a desabrochar com um grupo muito específico de historiadores italianos, que possui, até os dias de hoje, publicação própria (os Quaderni Storici), e por isto não é raro que se confunda a Micro-História – enquanto nova possibilidade de abordagem historiográfica – com este grupo. Mas veremos a seguir que a Micro-História merece ser tratada de maneira mais ampla, como um novo âmbito de possibili-dades historiográficas, e não como uma corrente ou escola dentro da historiografia. O olhar micro-historiográfico, deve-se dizer, pode ser conectado aos mais distintos aportes teóricos, e é assim que ele tem aparecido inclusive na historiografia brasileira das últimas décadas.
Outra confusão sem nenhum fundamento que algumas vezes se faz surge quando se relaciona equi-vocadamente a História Regional e a Micro-História, apesar de estes serem campos radicalmente distintos no que concerne às suas motivações fundadoras. Vejamos a seguir, para diferenciá-la mais claramente da Micro História, do que se trata quando se fala em “História Regional”.
Quando um historiador se propõe a trabalhar dentro do âmbito da História Regional, ele mostra-se interessado em estudar diretamente uma região específica (ou, melhor dizendo, uma determinada espacia-lidade). O espaço regional, é importante destacar, não estará necessariamente associado a um recorte admi-nistrativo ou geográfico, podendo se referir a um recorte antropológico, a um recorte cultural ou a qualquer outro recorte proposto pelo historiador de acordo com o problema histórico que irá examinar. Mas, de qualquer modo, o interesse central do historiador regional é estudar especificamente este espaço, ou as relações sociais que se estabelecem dentro deste espaço, mesmo que eventualmente pretenda compará-lo com outros espaços similares ou examinar em algum momento de sua pesquisa a inserção do espaço regio-nal em um universo maior (o espaço nacional, uma rede comercial).
Que a região é uma construção do historiador, do geógrafo ou do cientista social que examina uma determinada questão, isto já o sabem de longa monta os historiadores regionais. A região não existe obvi-amente como espaço pré-estabelecido, ela é construída dentro das coordenadas de uma determinada pes-quisa ou de uma certa análise sociológica ou historiográfica. Por isto, aliás, é preciso que o pesquisador – ao delimitar o seu espaço de investigação e defini-lo como uma ‘região’ – esclareça os critérios que o con-duziram a esta delimitação. Posto isto, é óbvio que o ‘espaço’, seja este definido como espaço físico ou como espaço social, é uma noção fundamental dentro deste campo de estudos que pode ser enquadrado como História Regional.
Enquanto a História Regional corresponde a um domínio ou a uma abordagem historiográfica que foi se constituindo em torno da idéia de construir um espaço de observação sobre o qual se torna possível perceber determinadas articulações e homogeneidades sociais (e a recorrência de determinadas contradi-ções sociais, obviamente), já a Micro-História corresponde a um campo histórico que se refere a uma coisa bem distinta: a uma determinada maneira de se aproximar de uma certa realidade social ou de construir o objeto historiográfico. A Micro-História, sustentaremos aqui, relaciona-se a uma abordagem, mais do que a qualquer outra coisa.
Antes de mais nada é preciso deixar claro que a Micro-História não se refere necessariamente ao estudo de um espaço físico reduzido ou delimitado, embora isto possa até ocorrer. O que a Micro-História pretende é uma redução na escala de observação do historiador com o intuito de se perceber aspectos que, de outro modo, passariam desapercebidos. Quando um micro-historiador estuda uma pequena comunidade, ele não estuda propriamente a pequena comunidade, mas estuda através da pequena comunidade (não é por exemplo a perspectiva da História Local, que busca o estudo da realidade micro-localizada por ela mesma). A comunidade examinada pela Micro-História pode aparecer, por exemplo, como um meio para se atingir a compreensão de aspectos específicos relativos a uma sociedade mais ampla. Da mesma forma, pode-se tomar para estudo uma ‘realidade micro’ com o intuito de compreender certos aspectos de um pro-cesso de centralização estatal que, em um exame encaminhado do ponto de vista da macro-história, passa-riam certamente desapercebidos.
O objeto de estudo do micro-historiador não precisa ser, desta maneira, o espaço micro-recortado. Pode ser uma prática social específica, a trajetória de determinados atores sociais, um núcleo de represen-tações, uma ocorrência (por exemplo, um crime) ou qualquer outro aspecto que o historiador considere revelador em relação aos problemas sociais ou culturais que está disposto a examinar. Se ele elabora a bio-grafia ou a “história de vida” de um indivíduo (e freqüentemente escolherá um indivíduo anônimo) o que o estará interessando não é propriamente biografar este indivíduo, mas sim os aspectos que poderá perceber através do exame micro-localizado desta vida.
Da mesma maneira, assim como a Micro-História não deve ser confundida com a História Regional ao examinar eventualmente um espaço micro-recortado, também não deve ser confundida com o chamado ‘estudo de caso’ ao estudar uma prática social ou uma ocorrência, e nem ser confundida com a Biografia Histórica ao examinar uma “vida” ou uma trajetória individual. Sempre que toma estes objetos – micro-localidade, prática social, ocorrência histórica, trajetórias individuais entrecruzadas ou vida individual – o micro-historiador está no encalço de algo mais do que estes objetos em si mesmos. A prática micro-historiográfica não deve ser definida propriamente pelo que se vê, mas pelo modo como se vê.
Para utilizar uma metáfora conhecida, a Micro-História propõe a utilização do microscópio ao in-vés do telescópio. Não se trata, neste caso, de depreciar o segundo em relação ao primeiro. O que importa é ter consciência de que cada um destes instrumentos pode se mostrar mais apropriado para conduzir à per-cepção de certos aspectos do universo (por exemplo, o espaço sideral ou o espaço intra-atômico). De igual maneira, a Micro-História procura enxergar aquilo que escapa à Macro-História tradicional, empreendendo para tal uma ‘redução da escala de observação’ que não poupa os detalhes e que investe no exame intensi-vo de uma documentação. Considerando os exemplos antes citados, o que importa para a Micro-História não é tanto a ‘unidade de observação’, mas a ‘escala de observação’ utilizada pelo historiador, o modo intensivo como ele observa, e o que ele observa.
A idéia de que, em muitos casos, a Micro-História examina um campo ou um aspecto reduzido para enxergar mais longe, ou para perceber elementos que escapariam à macro-perspectiva tradicional, merece alguns esclarecimentos adicionais. Poderíamos utilizar aqui uma nova metáfora: a de que o micro-historiador examina “uma gota d’água para enxergar algo do oceano inteiro”, contanto que tenhamos uma compreensão muito precisa sobre que esta imagem significa. Suponhamos um oceanógrafo que estivesse investindo em uma possibilidade como esta. Ele se propôs a buscar compreender algo do oceano inteiro a partir de uma minúscula gota d’água extraída deste oceano – será isto possível? A resposta depende obvi-amente do problema científico que se pretende examinar. Não é possível compreender a fauna marítima examinando uma simples gota do oceano (um peixe não cabe em uma gota d’água). Mas é possível estudar a composição molecular da água a partir de qualquer gota (com exceção, talvez, das gotas extraídas de áreas que sofreram vazamentos de óleo nos acidentes ecológicos que ocasionalmente têm perturbado os noticiários recentes). Não está sendo defendida aqui nenhuma proposta de que este macrocosmos que é o oceano está essencialmente contido neste microcosmos que é a gota d’água, ou de que a sociedade inteira está contida em cada um dos seus fragmentos passíveis de serem examinados. Também não se trata de dizer que a micro-análise seleciona um fragmento para amostra (algumas gotas do oceano, por exemplo), para depois proceder a uma generalização das observações com o fito de concluir que o que aconteceu a uma ou mais gotas d’água acontecerá a todas que compõem o oceano (o que seria o método empírico-indutivo tradicional). Na verdade, a Micro-História não trabalha propriamente com generalizações deste tipo. Pelo contrário, as motivações que produziram este novo tipo de abordagem historiográfica são até mesmo um pouco avessas seja às grandes generalizações (tão típicas das antigas utopias historiográficas da “história total”), seja à idéia de que a gota contém o oceano ou de que o fragmento social contém a socie-dade). De que se trata então?
Leia a continuação deste texto em:
O presente texto também se encontra, em outra versão, em um dos capítulos do meu livro "O Campo da História" (BARROS, José D'Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 8a edição).
______________________________
Outras referências bibliográficas:
BARROS, José D'Assunção. "Micro-História" in O Campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 8a edição. p.152-179.
BARROS, José D'Assunção. "O olhar micro-historiográfico no Brasil". Revista do IHGB, a-165, n°424, jul/set. 2004.
GINZBURG,Carlo. “O inquisidor como antropólogo” In A Micro História e outros ensaios. Lisboa: DIFEL, 1991 [original: 1989]
GINZBURG, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário” In Mitos, Emblemas, Sinais, São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.143-179
GINZBURG,Carlo. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987 [original: 1975]
LEVI, Giovanni. "Sobre a Micro-História" in BURKE,Peter (org.) A Escrita da História - novas perspectivas. São Paulo: Unesp. 1992. p.133-161.
LIMA, Henrique Espada. A Micro-História Italiana - escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
PESAVENTO, Sandra. “Esta história que chamam micro” In: Questões de teoria e metodologia da história. Porto Alegre: Edurgs, 2000, p. 228-229.
REVEL, Jacques (olrg.). Jogos de Escala - a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.
Nenhum comentário:
Postar um comentário